Domingo, 13 de agosto de 2017 às 13h02


Quase sempre apresentado como inimigo dos ecossistemas, o fogo é, no entanto, indispensável para a preservação das savanas, como afirmam unanimemente os estudiosos do assunto. No Brasil, o Cerrado, que constitui a mais biodiversa savana do mundo, encontra-se seriamente ameaçado pela conjunção de dois fatores: a expansão da fronteira agrícola e a proibição do uso do fogo como método de manejo. É o que sustenta o artigo The need for a consistent fire policy for Cerrado conservation, publicado por Giselda Durigan, do Instituto Florestal do Estado de São Paulo, e James Ratter, do Botanic Garden Edinburgh, de Edimburgo, Escócia, no Journal of Applied Ecology.

Por José Tadeu Arantes | Agência FAPESP

Giselda Durigan, que é também professora em programas de pós-graduação em Ciência Florestal na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e em Ecologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), estuda o Cerrado há mais de 30 anos. Participou recentemente do projeto “Impacto de fatores antrópicos (fogo, agricultura e pastoreio) sobre a biodiversidade em savanas”, apoiado pela FAPESP no âmbito do Belmont Forum. E, entre vários estudos em andamento, integra o projeto “Efeitos do fogo e de sua supressão sobre a estrutura, a composição e a biodiversidade do ecossistema no gradiente fisionômico do Cerrado na Estação Ecológica de Santa Bárbara”, parcialmente apoiado pela National Science Foundation, dos Estados Unidos.

 

Estudo defende a necessidade da queima criteriosa para a preservação da mais rica savana do mundo, prodígio de biodiversidade e berço de importantes rios brasileiros. Foto: Arthur de Magalhães Goulart/Wikimedia Commons

 

“Nas savanas de todo o mundo, está ocorrendo um processo de adensamento da vegetação, com perda de biodiversidade. E a principal causa, no Brasil, é a supressão do fogo. O Cerrado vai ficando cada vez mais cheio de árvores e começa a virar floresta. Como quatro quintos da biodiversidade de plantas desse bioma estão no estrato herbáceo, virar floresta constitui uma enorme perda de biodiversidade. A maioria das plantas do Cerrado não suporta a sombra. Então, quando o dossel formado pelas copas das árvores se fecha e sombreia o solo, centenas de espécies de plantas endêmicas desaparecem”, afirmou a pesquisadora à Agência FAPESP.

“Nosso estudo na Estação Ecológica de Santa Bárbara, na região oeste do Estado de São Paulo, mostrou que, a partir de um determinado ponto de adensamento, a transformação do Cerrado em floresta se torna irreversível. Então, não podemos deixar que a biomassa transponha esse ponto. É preciso ter um programa de queima. Todo mundo acha que fogo é ‘do mal’, em se tratando de ecossistemas. Porém o entendimento de que o fogo é necessário, mas precisa ser manejado, é um consenso entre os pesquisadores de savanas. Temos que reaprender a manejar o fogo como os indígenas já faziam há milhares de anos”, continuou.

É preciso deixar logo claro que, quando fala no uso do fogo, Durigan não se refere a queimadas indiscriminadas, mas a um método de manejo criteriosamente estabelecido, com zoneamento da área total e cronograma de queima, em sistema de rodízio. O zoneamento define uma estrutura em forma de mosaico e o cronograma estabelece as épocas certas para queimar cada parte. Desse modo, uma parte é queimada em determinada época; outra, alguns meses depois; outra no ano seguinte; e assim por diante. Há um rodízio nas queimas das partes, mas o mosaico entre porções recém-queimadas, porções queimadas há algum tempo e porções que não queimam há muito tempo se mantém. Isso garante a reposição da vegetação e assegura rotas de fuga e habitats para os animais. “Na Estação Ecológica de Santa Bárbara, estamos queimando áreas contínuas de 20 a 30 hectares, sem riscos para a flora, sem nenhuma perda de fauna, e com grandes benefícios”, afirmou a pesquisadora.

“As savanas queimam espontaneamente. As gramíneas do tipo C4, que são fundamentais para a existência das savanas, evoluíram há cerca de 8 milhões de anos, na presença do fogo, muito antes do surgimento da espécie humana no planeta. O que não queremos é o fogo descontrolado. Por que, recentemente, 60 mil hectares da Chapada dos Veadeiros queimaram em poucos dias? Porque vinha sendo promovida uma política de prevenção de incêndios. E isso fez com que se acumulasse uma quantidade enorme de material combustível. Então, quando ocorreu um incêndio, ele se disseminou de maneira descontrolada. O exemplo mais desastroso de incêndio descontrolado foi o do Parque de Yellowstone, nos Estados Unidos, onde também havia sido adotada uma política de prevenção de incêndios. O resultado foi que, quando queimou, o parque queimou inteiro, e foi uma calamidade, porque a fauna ficou sem habitat, sem alimento”, argumentou Durigan.

Como informou a pesquisadora, as savanas são biomas de clima tropical formados por árvores esparsas e solo coberto por gramíneas e plantas herbáceas e arbustivas. Essas formações surgiram devido à conjugação de dois fatores principais: um regime de chuvas bem característico, com precipitações concentradas no verão e seca no inverno, geralmente associado às propriedades do solo.

Chuva sobre a areia

Quando chove sobre um solo argiloso, mais barrento, a água fica retida por longo tempo. Mas, quando chove sobre a areia, bastam dois dias de estiagem para que o solo fique seco de novo. Então, em uma região de clima tropical onde exista um mosaico de florestas e savanas, como o oeste do Estado de São Paulo, se o solo é mais argiloso, a vegetação predominante é de tipo florestal, porque a floresta é mais exigente em água. Se o solo é mais arenoso, os três meses de seca, comuns nesta região, são suficientes para dificultar que a vegetação de tipo florestal colonize a área. E, nesse caso, o Cerrado se estabelece. Suas árvores têm raízes muito profundas e buscam a água acumulada no subsolo por chuvas ocorridas meses antes. O que manda é a disponibilidade de água no solo para as plantas, que dependem de quanto chove e de quanto o solo armazena.

Todas as savanas do mundo apresentam duas características determinantes: uma estação seca prolongada e o fogo como fator natural de seleção e pressão evolutiva. As plantas do Cerrado evoluíram na presença do fogo. E se adaptaram a isso. As árvores rústicas do Cerrado são, com frequência, revestidas por súber espesso – algo como uma manta, formada por células mortas, que envolve troncos e galhos. Quando o Cerrado queima, o súber age como isolante térmico, impedindo que as altas temperaturas atinjam os tecidos vivos internos. O súber queima externamente, mas a árvore sobrevive, e um novo súber é formado. Quanto às gramíneas, elas logo rebrotam. E bastam dois meses para que o Cerrado queimado se transforme em um exuberante jardim.

“A extraordinária resiliência do Cerrado, isto é, sua capacidade de reagir às perturbações, deve-se especialmente à estrutura subterrânea das plantas, que rebrotam inúmeras vezes. Daí o risco à sobrevivência do Cerrado constituído atualmente pela expansão agrícola. Porque, quando a pecuária foi instalada no Cerrado, houve desmatamento e mudança da paisagem, com o predomínio de fisionomias campestres, vegetação muito aberta e poucas árvores. Mas a estrutura subterrânea das plantas foi, em geral, preservada e, assim, não ocorreu perda total de biodiversidade. Com a agricultura é diferente. As estruturas subterrâneas são deliberadamente destruídas, porque é necessário eliminar toda a vegetação preexistente e sua capacidade de rebrota para tornar a área cultivável. Então, são utilizados equipamentos que cortam as raízes em profundidade e herbicidas poderosos que deixam o solo completamente limpo. Não sobra nada do Cerrado que existia antes”, explicou Durigan.

Além da perda de biodiversidade e da destruição de uma paisagem maravilhosa, a expansão agrícola, por um lado, e a incompreensão da necessidade do fogo, por outro, vêm acarretando mais uma consequência gravíssima para o Cerrado: o impacto sobre as águas. “O maior valor do Cerrado entre os biomas brasileiros, e seu maior valor comparativamente ao de outras savanas do mundo, é a produção de água. Alguns dos mais importantes rios do Brasil – o Xingu, o Tocantins, o Araguaia, o São Francisco, o Parnaíba, o Gurupi, o Jequitinhonha, o Paraná, o Paraguai, entre outros – nascem no Cerrado. Acabar com o Cerrado é comprometer a sobrevivência desses rios, não apenas como manancial de água doce, mas também potencial hidrelétrico. Vamos lembrar que 77,2% da matriz elétrica brasileira é suprida pela hidroeletricidade. O Brasil possui o terceiro maior potencial hidrelétrico tecnicamente aproveitável do mundo. E está colocando esse precioso recurso em risco”, alertou a pesquisadora.

O Cerrado é a única savana do mundo dotada de rios perenes. Nas savanas da África, da Ásia e da Oceania, os rios, em sua maioria, são sazonais: desaparecem na estação seca e causam enchentes calamitosas na estação chuvosa. Esse bioma, ainda predominante no Brasil Central, que se estende do Maranhão até o Paraguai, cobria originalmente mais de 2 milhões de quilômetros quadrados, cerca de 25% do território brasileiro. Suas paisagens agrestes, tantas vezes subestimadas no passado, e ainda hoje mal compreendidas, escondem uma biodiversidade fabulosa. “Somente agora, com o estudo de grande porte desenvolvido já há três anos na Estação Ecológica de Santa Bárbara, estamos conseguindo fazer o levantamento de todas as espécies, inclusive as do estrato herbáceo. Há trechos em que encontramos 35 espécies diferentes de plantas por metro quadrado. No conjunto da estação, já amostramos quase 500 espécies diferentes de plantas. E tem colegas estudando a fauna: cobras, lagartos, sapos, formigas etc.”, contabilizou Durigan.

Para avaliar a importância de 35 espécies diferentes de plantas por metro quadrado, basta considerar que essa biodiversidade é, na microescala, superior à da floresta tropical. “A floresta tropical possui uma incrível biodiversidade na macroescala, mas não é tão diversa na microescala. Na microescala, o Cerrado só perde em biodiversidade para os Pampas, que chegam a ter mais de 50 espécies por metro quadrado”, sublinhou a pesquisadora.

O projeto em andamento está fazendo o levantamento completo da biodiversidade em um gradiente que vai do campo aberto ao cerradão – formação caracterizada por uma vegetação muito adensada, com grande predomínio de árvores. E analisando também o efeito do fogo sobre essa biodiversidade.

“Temos registros do uso do fogo pelos indígenas desde há milhares de anos. Eles queimavam por diferentes motivos e, portanto, com diferentes frequências. Alguns para facilitar a caça, outros para aumentar a produtividade de espécies vegetais utilizadas como alimento. Precisamos conjugar essa sabedoria ancestral com o conhecimento científico de vanguarda. Nosso objetivo é fornecer subsídios para uma política responsável e consistente de uso do fogo”, finalizou Durigan.

Depois de ter sido citada e ilustrada inúmeras vezes desde o século 19, a espécie só agora ganhou um nome científico: Potamotrygon wallacei. Foto: Arraia cururu/Richard Harwicke

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