Quinta-feira, 21 de junho de 2018 às 17h43


Nas últimas décadas, a indústria automotiva não viu transformações como as que têm ocorrido recentemente. As montadoras, por exemplo, até então acostumadas a deter o poder de decisão sobre as estratégias de desenvolvimento, fabricação e venda de novos modelos de veículos – com o aumento da tendência de digitalização dos automóveis, das linhas de produção e das cadeias de valor – têm visto sua liderança tecnológica no setor ser ameaçada por empresas como Siemens e Bosch. Segundo especialistas, essas empresas têm desenvolvido tecnologias que as montadoras não possuem e precisam adquirir.

Elton Alisson | Agência FAPESP

“As montadoras ainda são os principais atores e que detêm mais poder na cadeia de produção da indústria automobilística. Mas, há alguns anos, começou-se a pensar que esses fornecedores de primeiro nível, que têm se tornado empresas muito poderosas e detido tecnologias que as montadoras não conseguem dominar, podem sobrepujá-las”, disse Roberto Marx, professor do Departamento de Engenharia de Produção da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), à Agência FAPESP.

 

Entrada no setor de empresas de tecnologia, como Google, Tesla e Amazon, pode contribuir para mudar a estrutura e a própria natureza do negócio, avaliam pesquisadores. Foto: Wikipedia

 

Com o aumento das ondas de eletrificação e de desenvolvimento de carros autônomos, as montadoras também passaram a ter sua hegemonia de poder ameaçada por empresas de tecnologia, como Tesla, Uber, Google, Amazon, Cisco e Microsoft, entre outras, além de fabricantes de baterias e de outros equipamentos elétricos.

Essas empresas têm entrado e podem se tornar os principais atores desse setor e mudar sua estrutura e a própria natureza do negócio, avaliaram Marx e outros especialistas participantes do 26º Colóquio Internacional da International Network of the Automotive (Gerpisa, na sigla em francês), realizado de 11 a 14 de junho na USP.

O encontro da rede internacional de estudos sobre a indústria automotiva, que teve apoio da FAPESP, reuniu pesquisadores de diversos países com o objetivo de discutir as mudanças pelas quais têm passado o setor automotivo global.

“A grande questão, para a qual ainda não há resposta, é quem vai prevalecer nesse novo cenário de competitividade tecnológica no setor automotivo. Se serão os ‘dinossauros’, que nesse caso são as montadoras de veículos, as iniciantes, que são as empresas de tecnologia, ou ambos”, disse John Paul MacDuffie, professor da Wharton School, nos Estados Unidos.

Na avaliação dele, a indústria automotiva passa atualmente por um momento de mudança disruptiva – que provoca uma ruptura com os padrões, modelos e tecnologias já estabelecidos no mercado.

Os veículos elétricos, por exemplo, representam a primeira mudança fundamental no design dominante no setor automotivo desde 1920. E o automóvel – que já é um produto multitecnológico, composto por entre 5 mil e 10 mil componentes fabricados por uma cadeia de suprimentos global complexa de vários níveis – tem se tornado ainda mais complexo.

“Os automóveis, que são objetos pesados e de movimento rápido que operam no espaço público, têm enfrentado demandas regulatórias ambientais, de transporte e de consumo cada vez maiores. As novas tecnologias estão aumentando ainda mais essa complexidade”, disse MacDuffie.

Estima-se que até 2030, aproximadamente, 70% dos carros fabricados e comercializados no mundo estejam totalmente conectados à internet e que até um quinto da frota de automóveis em circulação no mundo seja composta por carros elétricos.

Os veículos autônomos também podem se tornar realidade em um futuro breve e reduzir o número de mortes no trânsito, mudar os serviços de transporte e o planejamento urbano, eliminar empregos e fornecer maior mobilidade aos deficientes e idosos.

“Se cada mudança perturbadora como essas que a indústria automobilística tem passado chegasse separadamente, as montadoras de veículos poderiam lidar melhor com esses problemas, como fizeram no passado”, avaliou MacDuffie.

Bateria e conexão em alta velocidade

Os carros elétricos, autônomos ou totalmente conectados à internet, contudo, ainda estão longe de se tornar realidade e têm enfrentado uma série de barreiras tecnológicas, ponderaram especialistas participantes do evento. Dos 94,5 milhões de veículos vendidos no mundo em 2017, apenas 1 milhão (1,04%) eram elétricos e ainda não há um modelo de veículo totalmente conectado à internet ou completamente autônomo.

Alguns dos fatores que têm contribuído para limitar o avanço dos carros elétricos, por exemplo, são a baixa densidade energética (a quantidade de energia disponível) das baterias de lítio e a necessidade de um longo tempo de recarga.

Já no caso dos carros totalmente conectados à internet o desafio é prover conexão em alta velocidade e absolutamente segura, de modo a impedir a ação de hackers. Por sua vez, os veículos autônomos, que ainda estão em escala experimental, precisam superar uma série de desafios relacionados à segurança e questões normativas.

“Todos esses desafios tecnológicos possibilitam a entrada de novos participantes, que têm competido com as montadoras na corrida pelo domínio tecnológico. Mas esses obstáculos tecnológicos também apresentam oportunidades de colaboração em pesquisa e desenvolvimento entre elas”, afirmou MacDuffie.

Em razão de investimentos em pesquisa e desenvolvimento anteriores aos feitos pelas empresas de tecnologia, as montadoras detêm hoje a maioria das patentes relacionadas a veículos elétricos e autônomos, e ainda dominam o mercado automotivo devido à função que exercem de integradoras do sistema. Mas as novas empresas ingressantes e de tecnologia podem ter a vantagem de dar grandes saltos para novos conceitos e modelos de negócios, ponderaram os especialistas.

“Essa mudança pela qual passa a indústria automotiva no mundo não significa que as montadoras de automóveis se tornarão subcontratadas das empresas líderes em tecnologia, como Google, Apple e Facebook”, disse Takahiro Fujimoto, professor da Universidade de Tokyo. “Elas poderão fazer cooperações inteligentes com essas empresas”, disse.

Fujimoto escreveu um artigo com MacDuffie, intitulado Why dinosaurs will keep ruling the auto industry, publicado em 2010 na revista Harvard Business Review. A conclusão dos autores na época era que, a despeito de muitos especialistas acharem que as novas empresas ingressantes no setor automotivo estão prontas para reinventar a indústria e que as montadoras, que dominam esse mercado como “dinossauros”, caminham para a extinção, essas últimas têm chances de vencer esses novos desafiantes pelo menos nas próximas décadas.

“Ainda continuamos apostando nisso. Mas, para isso, as montadoras precisarão se movimentar rapidamente e dar passos estratégicos”, disse MacDuffie.

As fabricantes de veículos poderão contratar pesquisadores para ganhar experiência em novas tecnologias, como de baterias, desenvolvimento de software e sensores, entre outros, formar alianças umas com as outras para dividir os enormes custos de desenvolvimento de novas tecnologias ou aproveitar o conhecimento dos próprios fornecedores, avaliou o especialista.

Alguns dos exemplos recentes é da BMW, que se associou à Microsoft, à Mobileye (uma startup israelense) e à Intel para desenvolver novos padrões de veículos autônomos. A Intel acabou adquirindo o controle da Mobileye, que, no fim de maio, anunciou ter assinado um contrato com uma montadora europeia para fornecer uma solução de direção autônoma.

A Ford se uniu ao Google, ao Uber, à Lyft (concorrente do Uber) e à Volvo para auxiliar no desenvolvimento da regulamentação de veículos autônomos. “Embora as parcerias entre fabricantes de veículos sejam comuns, as novas colaborações ultrapassam os limites da indústria”, avaliou MacDuffie.

Tesla: Premiere mundial do Modelo X. Foto: Divulgação/Tesla Motors

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