Quarta-feira, 19 de agosto de 2015, às 12h51


Querer mudar toda uma cultura na base da canetada é impossível. Coisa para gênio é mudá-la com instrução, educação e amor próprio, ao próximo. E isto demanda tempo. Ainda não é o que podemos ver em São Paulo.

Gerson Soares

A história da Europa ensina sobre a proliferação das diversas culturas ocidentais transmitidas ao longo de séculos, tomando aqui como início a Idade das Trevas. Resumindo, um período escuro, quando a lei do mais forte imperou produzindo todo tipo de crueldades e injustiças, ao mesmo tempo em que formava a base cultural do povo que sofreu na carne as torturas da inquisição e os desmandos dos poderosos senhores feudais. Em seu meio surgiram as Cruzadas que levaram ao Oriente Médio toda a insensatez da Europa Medieval, querendo impor sua vontade através da força, aos povos que ali habitavam mantendo sua própria cultura havia milênios.

Contra todas as mazelas, como a fome e a ignorância, o povo europeu lutou para superá-las e obter justiças, pagando caro por isso. Em nossos dias, recebem milhões de turistas das américas que buscam as suas raízes, as origens daqueles que imigraram do velho ao novo continente, para tentar uma nova vida em um ambiente hostil, porém repleto de oportunidades. Também os orientais bebem da fonte cultural europeia. As guerras e as dores, aos poucos foram sendo superadas – passam séculos e ainda restam feridas. Castelos, conventos e monumentos, são visitados no continente europeu; fortalezas inexpugnáveis, campos floridos e tantas outras belezas, estão ao lado de verdadeiras obras macabras, lembrando o passado para fortalecer o presente, querendo aos homens a igualdade que dificilmente será atingida na totalidade, no consciente pleno que ainda depura. Em qualquer lugar, haverá quem se julgue acima das leis, do respeito e da ordem.

Nesta manhã, duas notícias com nítidas imagens do programa Bom Dia São Paulo, transmitido pela Rede Globo, sobre as ciclovias implantadas a todo custo pela Secretaria Municipal de Transportes (SMT), regulamentadas pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), sob as ordens da Prefeitura da Cidade de São Paulo (PMSP), ceifaram duas vidas: a de uma criança e um idoso. Os acidentes não escolhem idade. Protestos na zona Leste pelo menino morto e as tristes palavras do filho que irá enterrar o pai, que só saiu para comprar pão e não voltou vivo.

Segundo moradores, o menino foi morto por uma Van que invadiu a ciclovia construída no meio da Avenida Bento Guelfi, em São Mateus, no extremo Leste da cidade. O homem, um senhor já idoso, foi atropelado por uma bicicleta na ciclovia recém-inaugurada sob o minhocão na zona Oeste em Santa Cecília, próximo à Avenida Pacaembu, teve traumatismo craniano e morreu. Portanto, nesses dois extremos da cidade as consequências convergem para um mesmo ponto, ou seja, a pressa para ganhar notoriedade e demonstrar poder mal mensura as consequências desses atos.

No bairro de Laranjeiras, na periferia de São Paulo, as imagens do programa mostraram o protesto dos moradores revoltados com a morte do garoto de apenas nove anos. Durante a reportagem, o motorista de um ônibus amassou o obstáculo de borracha que deveria demarcar e impedir a invasão da ciclovia pelos veículos, carros e vans cruzaram a via exclusiva para bicicletas como se não existisse. Sob o minhocão, a imprudência pode ter sido acompanhada pela inconsequência de quem tem a obrigação de estar atento aos pedestres, mas não está isento de uma distração assim como estes. A zelar por eles deveria existir a ordem, um melhor planejamento que não os colocasse em dissensão.

As dificuldades com a mobilidade urbana e a construção desordenada das ciclovias colocam pedestres, ciclistas e carros em posições irremediavelmente conflitantes que só serão superadas através do hábito, a ser adquirido com o tempo. Uma mulher entrevistada pelo programa Bom Dia São Paulo, disse que até racha de carros e motos existe na ciclovia de São Mateus, onde a criança foi atropelada. Um segundo entrevistado foi taxativo: “Nós não estamos preparados para isso, falta educação”.

Certamente a Prefeitura não responderá por essas mortes. Caso seja processada, trará documentação suficiente para provar sua inocência e ainda culpará os imprudentes, multará os veículos que puderem ser identificados pelas imagens da reportagem. Os cruzados modernos, travestidos de Prefeito e Secretário Municipal dos Transportes, não terão insônia. Sua batalha pela mobilidade urbana, com problemas insolúveis a curtíssimo prazo, difíceis de resolver como querem, não será possível só com pesquisas e decretos. A fatalidade será culpada injustamente por eles pelas duas mortes. Teoricamente, na melhor das intenções os administradores buscam o bem-estar dos cidadãos, interpondo-se contra os veículos automotores, reduzindo as velocidades em todas as vias da cidade para conter os acidentes com a arma de que dispõe: a caneta. O instrumento que assina o decreto e obriga àqueles que possuem juízo a obedecê-lo, mas não evita que uma bicicleta também mate.

As canetadas não trarão tão facilmente séculos de depuração cultural – ocorrida nas principais capitais europeias pelas quais se inspiram os legisladores paulistanos Roma, Viena, Berlin, Amsterdã, Praga, Madrid, Bruxelas, Londres ou Paris – a um povo massacrado pela improb¬idade administrativa que não lhe fornece nem mesmo o respeito à saúde, à educação e à segurança, que zomba dos seus votos e arruína as instituições com a corrupção corrente.

Esses sim são hábitos que estão arraigados em São Paulo, uma capital miscigenada, repleta dos mais pujantes costumes, miscelânea cultural em seu centro, mas esquecida daqueles que ocupam à distância as áreas periféricas, que estão vencendo as adversidades como verdadeiros quixotes, galgando os degraus que os levam aos jardins da Avenida Paulista ou ao Parque do Ibirapuera, onde São Paulo lhes mostra a outra face.

As imagens de hoje trazem dois acidentes mortais para lembrar o Dia do Ciclista, um na periferia e outro no centro da grande cidade. Pouco a comemorar, muito a aprender. Jazem dessas lamentáveis ocorrências duas conclusões: antes de proporcionar segurança, educação e cultura suficientes para que os paulistanos entendam e respeitem seus iguais, será difícil implantar costumes europeus na marra. Através da punição, o respeito pela autoridade e o entendimento da ordem será retardado.

A segunda conclusão é que querer transformar São Paulo na Europa, antes de a Europa chegar a São Paulo, não levará ao êxito pelo amor à cidade, será mais uma via de improdutiva lida, sem que a Prefeitura tome para si as responsabilidades pelos atos falhos, sem garantir a eficiência das medidas, deixando aos cidadãos a incumbência de se adaptarem às leis impostas ou serem punidos. No dia de ontem, uma criança e o idoso, com a morte.

 

Ilustração: Bicicletas também matam. Sobrefoto: aloart