Segunda-feira, 27 de novembro de 2017 às 20h01


Quando os aglomerados de galáxias e os aglomerados de estrelas (globulares) se formam, ocorre um fenômeno chamado “relaxação violenta”. Após interagirem intensamente entre si, os milhares ou até milhões de corpos chegam a uma situação de relativo equilíbrio gravitacional e a uma distribuição espacial de certo modo duradoura.

José Tadeu Arantes | Agência FAPESP

Um novo estudo, desenvolvido por pesquisadores brasileiros, mostrou que a visão que se tinha acerca da “relaxação violenta” estava equivocada. E tratou de corrigi-la.

Publicado em The Astrophysical Journal, o trabalho contou com apoio da FAPESP por meio de bolsas e auxílios concedidos a vários pesquisadores e também pela utilização de um cluster computacional financiado por meio do Programa Equipamentos Multiusuários.

 

Simulações numéricas mostram que fenômeno apresenta comportamento peculiar, que é a oscilação da entropia na fase inicial do processo. No fim, a entropia aumenta, como era de se esperar, indica pesquisa (aglomerado globular Messier 55, localizado na Via Láctea, na região caracterizada pela constelação de Sagitário, a 17.300 anos-luz da Terra / imagem: Nasa

 

“O processo de relaxação sempre foi analisado por meio da chamada Equação de Vlasov, uma equação diferencial proposta, em 1931, pelo físico russo Anatoly Alexandrovich Vlasov [1908-1975], para descrever os processos cinéticos que ocorrem no plasma”, disse Laerte Sodré Júnior, professor titular e ex-diretor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), um dos autores do estudo.

“O problema é que a Equação de Vlasov supõe que a entropia do sistema seja constante – isto é, que não ocorra produção de entropia. Vale dizer, que a situação seja simétrica no tempo – uma vez que a seta do tempo é determinada pelo aumento de entropia. Isso obviamente não acontece no fenômeno real”, disse Sodré.

Se fosse verdadeiro, um processo desse tipo – reversível no tempo – exigiria uma revisão dos próprios fundamentos da física. Por isso, a literatura especializada se referia a ele como “paradoxo fundamental da dinâmica estelar”.

“Tínhamos claro que alguma coisa estava errada e nossa suspeita foi confirmada pelo estudo. A solução que encontramos para o suposto ‘paradoxo’ pode ser resumida em uma frase curta: a Equação de Vlasov simplesmente não se aplica ao caso”, disse Sodré.

Para comprovar essa ideia intuitiva, os pesquisadores precisaram se valer de pesados recursos computacionais. A interação gravitacional entre esses corpos celestes (galáxias ou estrelas) é bem descrita pela Lei da Gravitação Universal de Newton (cuja publicação completou 330 anos em 2017). O problema é matematicamente simples de resolver quando se trata de um sistema de dois corpos, mas a solução analítica se torna inviável em sistemas envolvendo milhares ou até milhões de corpos, cada qual interagindo gravitacionalmente com todos os demais. Daí a necessidade de se recorrer a complexas simulações numéricas.

“Empregamos técnicas numéricas desenvolvidas pelo astrônomo norueguês Sverre Aarseth, que é o grande especialista nesse tipo de simulação envolvendo muitos corpos. São simulações que exigem tanta capacidade computacional que, para realizá-las, tivemos que usar clusters de GPUs [Graphics Processing Units], muito mais eficientes do que as CPUs [Central Processing Units], usualmente utilizadas. Mesmo assim, cada simulação durou vários dias”, explicou Sodré.

Durante o trabalho, os pesquisadores brasileiros até receberam a visita de Aarseth, que continua extremamente ativo aos 83 anos de idade. Paralelamente à Astronomia, o premiado cientista norueguês é um aficionado por trekking, montanhismo e vida selvagem. Além de ser também mestre internacional de xadrez por correspondência.

“Os programas computacionais de Aarseth nos possibilitam resolver o problema de forma eficiente e confiável. Depois, para testar os resultados, nós os confrontamos com soluções obtidas por meio de outros programas cosmológicos. E eles foram compatíveis”, disse Sodré.

Equilíbrio do virial

As simulações mostraram que a entropia aumenta – como era de se esperar. Mas, além desse resultado previsível, houve outro, bem mais difícil de entender. É que, se no longo prazo a entropia cresce, no começo do processo de relaxação ela apresenta um comportamento oscilatório: ora aumenta, ora diminui.

“Pode parecer contraditório com o que se sabe sobre entropia, que é tida como uma grandeza que sempre aumenta. É certo que, no longo prazo, ela aumenta inexoravelmente, mas isso não ocorre o tempo todo. O grande alcance das interações gravitacionais faz com que os corpos estabeleçam correlações entre si e são tais correlações que determinam o caráter oscilatório da entropia na fase inicial do processo”, disse Sodré.

“Podemos pensar a questão nos seguintes termos. A entropia possui dois aspectos. Um puramente caótico, associado à segunda lei da termodinâmica e que corresponde à entropia convencional. Outro é decorrente dessas correlações, elas se perdem com o tempo, porém de forma mais lenta. E é isso que determina o comportamento oscilatório”, explicou.

Talvez fique mais fácil de entender ao se imaginar um conjunto de mil estrelas ou de mil galáxias, confinadas em um certo volume, todas inicialmente com velocidade zero. Devido à interação gravitacional, cada uma passa a atrair todas as demais e a distribuição inicial se modifica, ora encolhendo, ora expandindo.

Esse vaivém, determinado por interações de longo alcance, associa-se a oscilações de entropia. E perdura até que o sistema todo alcance uma situação de relativo equilíbrio, em que fica de certo modo estável em termos de suas propriedades gerais. No século 19 essa situação recebeu o nome de “equilíbrio do virial” – designação que se mantém até hoje.

“Trata-se de uma característica peculiar das interações gravitacionais. As interações eletromagnéticas também são de longo alcance, mas, como a matéria em geral é eletricamente neutra, seu efeito acaba ficando confinado em um volume restrito. Esse efeito de blindagem não ocorre com a força gravitacional. Em princípio, ela pode se estender até o infinito. E isso cria as tais correlações”, disse Sodré.

Embora interajam com o conjunto do Universo, os aglomerados de galáxias e os aglomerados globulares podem ser pensados, no caso, como sistemas fechados, “não dissipativos”. Isso significa que sua energia total não é perdida para o meio exterior, mas se conserva.

Alguns corpos ganham muita energia cinética e ficam com velocidade superior à velocidade de escape, desprendendo-se do sistema, mas isso não é muito relevante no conjunto. De modo geral, a oscilação de entropia deve ser pensada como processo interno, que não envolve troca de energia com o meio.

“Que eu saiba, só existe outro tipo de sistema que exibe essas oscilações de entropia. São reações químicas nas quais o composto que vai sendo produzido serve de catalisador para a reação inversa. Então, a reação fica indo de um lado para o outro, e a entropia do sistema oscila”, disse Sodré.

O novo estudo resolveu o “paradoxo fundamental da dinâmica estelar” e deu uma feição mais realista à formação das macroestruturas cósmicas. Além de Sodré, participaram do trabalho Leandro José Beraldo e Silva, Walter de Siqueira Pedra, Eder Leonardo Duarte Perico e Marcos Vinicius Borges Teixeira Lima.


O artigo The arrow of time in the collapse of collisionless self-gravitating systems: non-validity of the Vlasov-Poisson equation during violent relaxation pode ser lido em http://iopscience.iop.org/article/10.3847/1538-4357/aa876e e https://arxiv.org/abs/1703.07363.

Ilustração que aponta para as consequências das mudanças climáticas na Terra. Foto: NASA / Global Climate Changes

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