Quinta-feira, 21 de agosto de 2014 às 19h39

Estudo sobre o roubo na Idade Média ajuda a compreender as relações sociais do período

Por Diego Freire


Agência FAPESP – O livro Uma história do roubo na Idade Média, de Marcelo Cândido da Silva, professor de História Medieval da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), resgata registros sobre o crime em diversas situações durante a Alta Idade Média, período entre a queda do Império Romano do Ocidente e o ano 1000, para entender as relações sociais da época.

Publicada com apoio da FAPESP na modalidade Auxílio à Pesquisa – Publicações, a obra teve como fontes a legislação real do período, textos canônicos, testamentos e hagiografias – tipo de biografia sobre a vida de santos católicos –, entre outros documentos.

 

Vista aérea do Castelo di Montalto na Toscana, construído na Idade Média; veja as muralhas, os vários edifícios do entorno e a torre medieval. Foto: Paola Coda / Wikipedia

 

“Os registros são poucos, se comparados aos de outros períodos da Idade Média, mas revelam muitas especificidades das sociedades de então”, disse o autor à Agência FAPESP.

O objetivo é elucidar, por meio do estudo das percepções do roubo no período, os processos medievais de construção das relações sociais. “As disputas em torno dos bens são um aspecto pouco estudado da natureza do poder na Idade Média. Além do mais, as normas de combate ao roubo reforçam e explicitam as hierarquias sociais, na medida em que a intensidade da punição era resultado do status da vítima e não do valor do bem roubado”, explicou Cândido da Silva.

De acordo com o livro, as penas serviam para proteger e de alguma forma restaurar a honra e a dignidade de quem era roubado. “O valor dos bens não tinha uma importância central. A penalidade era maior na medida em que a vítima era de uma categoria social mais elevada. Trata-se de uma legislação que tem o objetivo de preservar e proteger a honra e a dignidade de um estatuto social”, observou o autor.

O vocabulário dos documentos analisados reforça esse aspecto. “Os textos preocupam-se muito em destacar o roubo como um ataque à honra, não aos bens ou à propriedade.” Isso ajudaria a entender características das sociedades feudais iniciais. “Nelas não existe uma contabilidade racional em torno da definição do valor das coisas. Claro que isso tinha importância, mas ficava em segundo plano diante do valor dos estatutos sociais.”

O roubo é tratado como um dos crimes mais severamente punidos nas antigas leis. A resolução dos conflitos também ocorria à margem dos tribunais, pela faida – a vingança familiar.

 

Interior da Sala de Armas do Castelo de Montalto na Toscana. As partes superiores das paredes estão decoradas com afrescos que representam as propriedades que pertenciam ao castelo no século XVI; as paredes exibem uma coleção de lanças, armaduras e outras armas antigas vindos a partir do século XIV em diante. Foto: Paola Coda / Wikipedia

 

A violência medieval

Na primeira parte do livro, o autor apresenta um panorama das mais recentes percepções dos historiadores sobre o papel das normas na construção das relações sociais daquele período.

“Tem-se um entendimento generalizado de que a Idade Média foi um período de extrema violência, mas não é bem assim. É importante que se entenda que a violência praticada então não era maior ou mais grave do que a da modernidade. Trata-se de uma sociedade com regras e princípios”, explicou.

Em seguida, é feita uma análise do roubo presente nas hagiografias, relatos documentados sobre a vida de santos e beatos, tratando de casos mencionados em registros da Gália, que hoje corresponde à região da França, entre os séculos 6 e 8. Também são analisadas as medidas previstas contra o roubo de bens na legislação real, contemplando editos, preceitos e documentos afins.

São tratados ainda os roubos descritos nos cânones conciliares – decisões ou regras estabelecidas sobre um dogma ou disciplina num concílio. O autor apresenta um panorama das medidas elaboradas pelos bispos católicos da Gália para combater a apropriação ilícita dos bens da Igreja Católica.

Ao interpretar a legislação eclesiástica como um instrumento de defesa dos bens da Igreja, o autor observa certa elasticidade no uso do termo “roubo”. “O campo semântico é elástico e depende de que maneira a Igreja atribui o termo também aos casos em que suas propriedades são contestadas”, disse. Dessa forma, um herdeiro que contesta nos tribunais a doação de bens da sua família feita pelo seu pai, tio ou avô à Igreja é tratado como ladrão pelos documentos.

Também havia contestação por parte da realeza, que tentava fazer com que os bens da Igreja fossem submetidos ao princípio da usucapião, a aquisição pelo decurso do tempo. “Os bispos diziam que isso não poderia acontecer porque nesses bens o tempo não incidia, já que não pertenciam à Igreja, mas a Deus”, explicou Cândido da Silva.

De acordo com o autor, crimes contra esses bens eram punidos com a penalidade máxima da época, a excomunhão, o que reafirma o entendimento de que, mais importante do que a propriedade, era o proprietário – no caso, Deus.

“A partir desses textos eclesiásticos é possível estabelecer paralelos importantes com a noção de propriedade na modernidade. Para os clérigos, a propriedade dos bens da igreja era absoluta e irreversível, sendo tratada em termos muito semelhantes à concepção moderna”, comparou o autor.

 

Uma história do roubo na Idade Média Autor: Marcelo Cândido da Silva Preço: R$ 24,50 Páginas: 152