Estudo aponta que a maioria dos reservatórios subterrâneos do país vai perder sua capacidade de renovação, aumentando o risco de escassez hídrica em diversas regiões, especialmente Sudeste e Sul. Uma estratégia para enfrentar o problema é a “recarga manejada”, que inclui técnicas para favorecer a infiltração da água de chuva ou até mesmo de esgoto tratado

José Tadeu Arantes | Agência FAPESP


A crise climática global pode comprometer de forma significativa a recarga natural dos aquíferos brasileiros, reduzindo a oferta de águas subterrâneas em praticamente todo o território nacional. A conclusão é de um estudo, conduzido por cientistas do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGc-USP) e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que analisou os impactos de diferentes cenários climáticos sobre a disponibilidade hídrica até o final do século. O trabalho foi publicado no periódico Environmental Monitoring and Assessment, sob o título Climate change impacts on groundwater: a growing challenge for water resources sustainability in Brazil.

Águas subterrâneas são aquelas que se acumulam abaixo da superfície terrestre, em formações geológicas chamadas aquíferos. Infiltram-se lentamente no solo após as chuvas e abastecem poços, nascentes, rios e ecossistemas. No Brasil, estima-se que 112 milhões de brasileiros (56% da população) sejam abastecidos total ou parcialmente por essa fonte.

O estudo do IGc-USP e do Inpe utilizou um modelo de balanço hídrico baseado em geoprocessamento e dados corrigidos de projeções climáticas do Coupled Model Intercomparison Project Phase 6 (CMIP6) para estimar as alterações de temperatura, precipitação, escoamento superficial e recarga de aquíferos entre 2025 e 2100. O CMIP6 unifica dados de vários centros de pesquisa em todo o mundo e é o modelo mais recente produzido pelo Programa Mundial de Pesquisa Climática (WCRP, na sigla em inglês).

A pesquisa considerou dois cenários de emissões de gases de efeito estufa: um moderado e outro pessimista. “O que constatamos foi a possibilidade de uma diminuição drástica da recarga dos aquíferos do país, especialmente nas regiões Sudeste e Sul, que vão ficar mais secas segundo praticamente todos os modelos climáticos analisados”, afirma Ricardo Hirata, professor titular do IGc-USP e primeiro autor do artigo.

Aumentos de temperatura

Os resultados mostram que o país deverá registrar aumentos consistentes de temperatura ao longo do século, entre 1,02 °C e 3,66 °C, dependendo do cenário e do período considerado. Ao mesmo tempo, a distribuição das chuvas tende a se tornar ainda mais desigual. A região Norte e parte do litoral Leste devem apresentar queda na precipitação média anual, ao passo que o Sul e parte do Nordeste (especialmente Ceará, Piauí e Maranhão) podem experimentar aumentos pontuais.

“Mesmo em regiões como o Sudeste, onde a quantidade total de chuvas não deverá variar muito, teremos uma mudança de regime, com verões mais chuvosos e períodos secos mais longos. Chuvas muito intensas e concentradas promovem o escoamento superficial e podem provocar inundações, mas não favorecem a infiltração da água no solo. E, sem infiltração, não há recarga”, informa Hirata.

O pesquisador destaca que, mesmo quando a água penetra no solo, o processo até atingir o aquífero pode levar meses. “Em vários estudos nossos, vimos que a água leva dois ou três meses para atravessar 10 a 15 metros de solo e chegar ao lençol freático. Se a chuva for intensa demais e durar pouco, essa água não chega lá”, pontua.

A recarga subterrânea pode diminuir até 665 milímetros por ano nas áreas mais afetadas. A situação mais crítica deve ocorrer no Sistema Aquífero Bauru-Caiuá (localizado na região Centro-Oeste do Brasil, abrangendo partes dos Estados de Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso), com redução de 27,94% no volume recarregado. Outros aquíferos importantes, como a área de afloramento do Guarani (em porções dos Estados de MG, SP, GO, MS, MT, PR, SC, RS), Furnas (BA, GO, MG), Serra Geral (MS, SP, PR, SC, RS), Bambuí Cárstico (PI, PB, PE, BA, GO, MG) e Parecis (RO, AM, MT), também devem sofrer perdas significativas (leia aqui).

 

Afloramento do aquífero Guarani na gruta Itambé, em Altinópolis (SP). Foto: Jonathan Wilkins / Wikimedia Commons

 

Desatenção para o problema

Apesar de sua importância estratégica, a dimensão subterrânea da crise hídrica tem recebido pouca atenção de políticas públicas. “A água subterrânea continua sendo esquecida na discussão sobre mudanças climáticas. Quando se fala do clima, fala-se de rios, de vegetação, de agricultura. Mas os aquíferos não entram na agenda”, aponta Hirata.

Ele lembra que mais da metade dos municípios brasileiros utiliza água subterrânea para abastecimento. “Temos uma gigantesca reserva de água que é resiliente a variações de recarga. Mesmo em anos de estiagem, o aquífero continua fornecendo água, porque seu armazenamento é muito grande. Foi o que ocorreu na grande estiagem de 2014-2016. As cidades abastecidas por água superficial foram duas vezes mais atingidas pela crise hídrica do que aquelas abastecidas exclusivamente por água subterrânea”, afirma Hirata. Existem cerca de 3 milhões de poços tubulares perfurados e outros 2 milhões de poços escavados no Brasil, que extraem entre 550 e 600 metros cúbicos de água por segundo. Desse total, 80% a 90% destinam-se para uso privado, na agricultura, indústria, serviços e abastecimento residencial complementar nas áreas urbanas.

Um exemplo é a cidade de São Paulo. “Apenas 1% do abastecimento público vem de aquíferos. Mas há cerca de 13 mil poços privados na região metropolitana que respondem por 11 metros cúbicos por segundo. Durante a crise hídrica, isso chegou a suprir 25% da demanda”, quantifica Hirata. Ele argumenta que, apesar de sua evidente distorção, o uso privado acaba tendo um papel social importante: “Pode parecer contraditório, mas, quando os ricos usam água de poços, sobra mais água da rede para os mais pobres”.

Soluções

O estudo não se limita a apontar problemas, propõe também soluções. Uma estratégia promissora é a recarga manejada de aquíferos (MAR, na sigla em inglês para managed aquifer recharge), que emprega técnicas para favorecer a infiltração da água de chuva ou de águas de esgoto tratadas. A MAR inclui até mesmo a injeção direta no aquífero, como já ocorre em Madri, na Espanha.

O pesquisador explica que a recarga manejada pode ser feita com estruturas simples, como bacias de infiltração ou pequenas barragens, até sistemas mais sofisticados de injeção direta no aquífero. “É possível captar a água de chuva ou mesmo o esgoto tratado e conduzir isso a sistemas de infiltração planejados. O solo funciona como um super-reator biogeoquímico, capaz de purificar essa água durante o trajeto até o aquífero.”

Em cidades grandes, como São Paulo, parte da recarga subterrânea já ocorre de forma involuntária. “Estudos com isótopos mostram que cerca de 50% da recarga na região central vem de vazamentos nas redes de água e esgoto. Isso mostra que a ocupação urbana também pode afetar positivamente os processos subterrâneos”, pondera Hirata.

 

 


 

Hirata, autor, com colaboradores, de As águas subterrâneas e sua importância ambiental e socioeconômica para o Brasil, receberá em outubro um prêmio conferido pelo Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea) por suas quatro décadas de atuação em defesa das águas subterrâneas. O estudo foi apoiado pela FAPESP.


Destaque – Aparados da Serra, Rio Grande do Sul. Foto: G. R. Schüür / Wikimedia Commons

 


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