Segunda-feira | 11 de fevereiro, 2019 | 20h
Nos próximos meses, se tudo der certo, duas mulheres com idade entre 30 e 35 anos que não conseguem ter filhos devem se submeter a um transplante de útero de doadoras mortas no Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) e, depois, tentarão engravidar.
Carlos Fioravanti | Revista Pesquisa FAPESP
A perspectiva se deve aos bons resultados do primeiro transplante desse tipo realizado pela equipe do Departamento de Gastroenterologia da faculdade: a menina que nasceu 15 meses depois dessa cirurgia bem-sucedida completou 1 ano em 15 de dezembro de 2018 e, como a mãe, está saudável.
O transplante de útero de doadora morta realizado na USP foi o primeiro a dar certo no mundo, depois de cerca de 10 tentativas, com a mesma abordagem, nos Estados Unidos, na Turquia e na República Checa. Com doadoras vivas, desde 2013, houve 39 transplantes, resultando em 11 bebês nascidos vivos. À medida que alcançar uma escala mais ampla e for legitimado como modalidade terapêutica pelo sistema público de saúde, esse procedimento poderá se constituir em uma alternativa de tratamento para a infertilidade, que afeta de 10% a 15% das mulheres.
“Esse é um grande avanço para a ginecologia e a obstetrícia brasileiras, ainda que as indicações sejam bastante limitadas”, comentou o cirurgião fetal Antonio Moron, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que não participou do trabalho. Esse tipo de transplante é indicado para mulheres sem útero, em razão de problemas congênitos ou cirurgias.
A mulher de 32 anos que passou pelo transplante no HC, em 20 de setembro de 2016, não tinha o órgão por causa da chamada síndrome de Mayer-Rokitansky-Küster-Hauser, embora os ovários produzissem óvulos. A doadora havia tido três filhos de partos naturais e morrido de hemorragia cerebral aos 45 anos.
A receptora menstruou pela primeira vez 37 dias após o transplante e, dois meses depois, engravidou, por meio da transferência do embrião. Uma das contribuições científicas desse trabalho foi indicar que o implante do embrião poderia ser feito antes de completar um ano do transplante de útero, o período aguardado pelas outras equipes com doadoras vivas, o que reduz os custos de medicamentos e os cuidados médicos.
O útero implantado não sofreu rejeição após o transplante nem durante a gestação e foi retirado após o parto para que a mulher pudesse parar de tomar os medicamentos imunossupressores e amamentar, de acordo com o artigo publicado pela equipe do HC em 4 de dezembro de 2018 da revista Lancet.
“O risco de dar problemas parece baixo”, comentou o cirurgião Wellington Andraus, coordenador do serviço de transplante de fígado do Departamento de Gastroenterologia da FM-USP. Sobre sua mesa de trabalho ele mantém uma fotografia da menina que nasceu de 36 semanas, por cesariana, com 2,5 quilogramas.
“O útero é um órgão bastante resistente”, observou Andraus. Esse trabalho, que ele coordenou ao lado do ginecologista Dani Ejzenberg, também da USP, indicou que o órgão, em formato de pera, pode se manter em bom estado por oito horas depois de retirado da doadora; é o mesmo tempo que outros órgãos, como fígado e pâncreas, e quase o triplo do que o coração.
Estratégia brasileira
Em 2015, um artigo na Lancet descreveu o primeiro transplante de útero com doadora viva, realizado em fevereiro de 2013, e o parto de um bebê em setembro de 2014, ambos realizados por um grupo da Universidade de Gotemburgo, na Suécia. Depois de ler o trabalho, Ejzenberg perguntou a Andraus se não poderiam trabalhar juntos para fazer esse tipo de transplante. Andraus aceitou.
“Desde o início achei que era um assunto inovador e merecia atenção especial”, comentou o cirurgião Luiz Carneiro D’Albuquerque, professor da FM-USP e chefe da Divisão de Transplantes de Fígado e Órgãos do Aparelho Digestivo do HC.
O grupo preferiu trabalhar com doadoras falecidas, com base no programa brasileiro de doação de órgãos de pessoas mortas, que viabilizou a captação de 3.625 rins, 1.485 fígados, 266 corações e 31 pâncreas de janeiro a setembro de 2018, segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (Abto). Além disso, a retirada do órgão seria mais rápida e de custo menor do que com doadoras vivas.
D’Albuquerque teve de detalhar a experiência de seu grupo, que faz 120 transplantes de fígado por ano, para Ejzenberg e Andraus serem aceitos em um curso prático, em ovelhas, em 2016 na Universidade de Gotemburgo. Com base em um dos casos que viram na Suécia – a mulher não engravidou porque ela e o marido se separaram e ele não autorizou a implantação do embrião –, a equipe do HC adotou uma inovação ética no formulário de consentimento: o marido pode tomar decisões junto com a mulher até o momento do transplante, mas depois cabe somente à mulher decidir se quer ou não implantar o embrião.
“Não conseguiríamos avançar sem o apoio das equipes do serviço estadual e nacional de transplante de órgãos, que autorizaram o transplante e entrevistaram as famílias das possíveis doadoras”, comentou Andraus. Ainda para se prepararem, fizeram a retirada de útero de sete doadoras mortas, trabalho em geral feito durante a madrugada, após a equipe de transplante retirar fígado e rins, órgãos considerados prioritários.
A equipe brasileira apresentou os resultados do trabalho em setembro de 2017 em um congresso em Gotemburgo. Em dezembro, uma semana antes do nascimento da menina em São Paulo, médicos da Universidade de Dallas, nos Estados Unidos, anunciaram o primeiro parto nas Américas de um bebê – um menino – nascido após transplante de útero de uma doadora viva.
A falta de doadoras vivas ou mortas, com idade até 45 anos e que já tenham tido filhos, como prova da fertilidade do útero, persiste como um dos problemas a serem enfrentados. Segundo D’Albuquerque, depois de acumular mais casos bem-sucedidos, outra batalha será a incorporação da cirurgia pelo Sistema Único de Saúde (SUS). “Entre o stent [prótese expansível usada para desobstruir artérias] surgir e ser aprovado pelo SUS foram oito anos”, exemplificou.
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