Como os ensinamentos de um filósofo romano e de um samurai japonês podem auxiliar em nossa compreensão do dever e da virtude atualmente? Mesmo separados por séculos e culturas radicalmente distintas, Marco Túlio Cícero e Miyamoto Musashi compartilham princípios surpreendentemente semelhantes sobre a vida, o comportamento ético e a busca pela excelência.

Por Fabricio Boscolo Del Vecchio*


Em uma análise comparativa que atravessa fronteiras temporais e culturais, o estudo “O sentido do dever: as virtudes nas obras de Marco Túlio Cícero e Miyamoto Musashi”, acerca dos escritos de Cícero e Musashi, publicado no periódico Trans/Form/Ação (vol. 47, no. 6), revela um terreno comum em torno das virtudes. Cícero, em sua obra “De Officiis”, trata a honestidade como a virtude das virtudes, e articula um sistema baseado em quatro virtudes cardinais: sabedoria, justiça, coragem e decoro. Musashi, embora não tenha escrito diretamente sobre virtudes em termos filosóficos tradicionais, está inserido no Bushidô – o código de honra dos samurais – e guarda princípios como justiça, coragem, compaixão, respeito e lealdade, mostrando que o dever e a virtude transcendem fronteiras geográficas e temporais.

Ambos os pensadores compartilham uma perspectiva crítica em relação ao apego aos bens materiais. Para Cícero, a verdadeira virtude repousa no desprezo pelas posses externas e na busca pelo que é honesto. Musashi segue o mesmo caminho, enfatizando que o foco deve estar no desenvolvimento pessoal e não na acumulação de riquezas. A conexão entre os dois pensadores sugere que a busca pela simplicidade e pela moderação é um componente-chave para uma vida virtuosa.

A coragem e a serenidade diante das adversidades são outras áreas de convergência. Cícero indica que a coragem envolve não temer a morte ou a dor, encarando-as com equanimidade e razão. Musashi, por sua vez, destaca que estar preparado para morrer é um componente essencial de sua filosofia. Ambos sublinham que a razão deve guiar as ações, seja no campo de batalha ou nas decisões cotidianas, reafirmando a importância do controle emocional e da serenidade.

 

Imagem: produção do autor a partir de imagens do Freepik

 

As diferenças também emergem de forma clara. Enquanto Cícero está imerso na vida política e vê a virtude em termos de um bem comum e da responsabilidade cívica, Musashi direciona suas reflexões para o aprimoramento pessoal e para o domínio das artes marciais como um caminho de desenvolvimento espiritual. Cícero oferece conselhos sobre o dever dos cidadãos, especialmente dos mais velhos, enquanto Musashi apresenta princípios mais introspectivos, centrados na autossuficiência e na superação individual.

No entanto, ambos concordam que a busca pelos prazeres efêmeros é uma armadilha para aqueles que desejam alcançar a excelência moral. Cícero critica os hedonistas e a busca desenfreada pelo prazer, enquanto Musashi adverte sobre os perigos de se deixar guiar pela luxúria e pelo desejo. A disciplina e a recusa de prazeres imediatos são vistas como caminhos essenciais para a construção de uma vida virtuosa e significativa.

Essa análise revela que, apesar de suas diferenças, as posições de Cícero e Musashi sobre o dever, a virtude e a coragem oferecem reflexões oportunas e aplicáveis ao mundo contemporâneo. Em tempos de desafios éticos e busca por sentido, ambos nos lembram que o caminho para uma vida plena e significativa passa pelo dever, pela virtude e pela constante prática de uma moral elevada. Tais ensinamentos, embora antigos, continuam a oferecer direcionamentos para as questões morais e existenciais de hoje, sugerindo que o caminho da virtude é tão relevante agora quanto foi há séculos.


O artigo completo pode ser lido em: DEL VECCHIO, B.F. and SANTOS, R. O sentido do dever: as virtudes nas obras de Marco Túlio Cícero e Miyamoto Musashi. Trans/Form/Ação [online]. 2024, vol. 47, no. 6, e02400290 [viewed 6 March 2025]. https://doi.org/10.1590/0101-3173.2024.v47.n6.e02400290. Available from: https://www.scielo.br/j/trans/a/9s5W47LmLbxZBVgfZjGLZcK/


*Fabricio Boscolo Del Vecchio, docente, Escola Superior de Educação Física e Fisioterapia, Universidade Federal de Pelotas (ESEF-UFPEL), Pelotas, RS, Brasil.


Destaque – Imagem: aloart / GI


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