Ricardo Luiz Salvador — Sócio-fundador do escritório Salvador Associados & Advogados, é especialista em Direito Regulatório Educacional.


Quando Jorge Mario Bergoglio foi eleito Papa em 2013, agregou à Igreja um movimento de mudança que não se limitou aos sermões e gestos simbólicos. Francisco, o pontífice que abraçou mendigos, denunciou as injustiças, defendeu os pobres e lutou muito pelo entendimento entre povos e nações, movido pela força de um autêntico evangelizador, também transformou de modo significativo a estrutura jurídica e institucional da Igreja.


Se, por um lado, resgatou valores essenciais do cristianismo, como a humildade e a justiça social, por outro, modernizou o Estado mais peculiar do mundo: o Vaticano. Reformou a legislação vaticana e canônica. Não é sem razão que o Papa Leão XIV foi eleito para sucedê-lo, pois era próximo dele e deverá seguir a mesma linha filosófica e religiosa.

Em 2022, Francisco deu um passo histórico ao modificar o funcionamento da Cúria Romana com a Constituição Apostólica Praedicate Evangelium, substituindo a antiga Pastor Bonus (1988). Não foi apenas uma atualização burocrática, mas uma revolução silenciosa. Os altos postos da Cúria Romana, antes redutos quase exclusivos de cardeais e bispos, abriram suas portas para leigos, inclusive mulheres, assumirem cargos de liderança nos dicastérios, equivalentes aos “ministérios” da Igreja. Imaginem só: um departamento como o da Cultura e Educação, antes restrito a clérigos, passou a poder ser comandado por uma especialista em pedagogia ou um filósofo leigo. Isso não foi apenas modernização, mas sim uma total nova visão face a séculos de tradição hierárquica da Igreja.

Entretanto, Francisco não parou por aí. Ele fundiu órgãos, criou outros e deu ênfase máxima à evangelização, mas não no sentido antigo de proselitismo. Foi uma evangelização que dialogou com o mundo, que enfrentou a crise climática, acolheu migrantes e combateu a desigualdade. O Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral foi a prova disso, como órgão que passou a tratar de justiça social, ecologia e saúde como questões também centrais da fé.

O Papa Francisco, porém, não se limitou à reforma administrativo-constitucional do Vaticano. Em 2013, já no primeiro ano de seu pontificado, promoveu mudanças profundas no Código Penal do Estado. Crimes como abuso sexual de menores, lavagem de dinheiro e corrupção foram tipificados com rigor.

Pela primeira vez, foram incluídos delitos como tortura, genocídio e apartheid, mostrando que a Igreja não toleraria violações dos direitos humanos, mesmo que cometidas por seus próprios membros. E mais: Francisco acabou com a possibilidade de criminosos se esconderem atrás das muralhas de São Pedro, pois passaram a poder ser julgados tanto no país onde o crime ocorreu quanto no próprio Vaticano.

Francisco aboliu até a prisão perpétua, substituindo-a por penas de 30 a 35 anos, num gesto que refletiu sua visão de justiça com misericórdia. Mas, não se enganem: isso não foi brandura e sim coerência. O mesmo Papa que lavou os pés de detentos e refugiados também exigiu transparência e responsabilidade de seus colaboradores em toda a estrutura da Igreja.

As mudanças promovidas por Francisco não foram meros ajustes legais. Tratou-se de avanços que refletiram um projeto bastante claro: uma Igreja menos palaciana e mais presente na praça pública, com menos poder vertical e mais sinodalidade (processo de decisão coletiva e participativa), com menos dogmatismo e mais ação concreta.

Enquanto muitos esperavam um pontificado apenas de gestos simbólicos, o Papa Francisco mostrou que era possível mudar as estruturas sem trair os princípios. Provou que espiritualidade e justiça institucional não são inimigas, mas aliadas. E, no final das contas, foi isso que o fez não apenas um líder religioso, mas um reformador corajoso, dentro e fora dos muros do Vaticano.


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