André Naves — Defensor Público Federal formado em Direito pela USP, especialista em Direitos Humanos e Inclusão Social; mestre em Economia Política pela PUC/SP. Cientista político pela Hillsdale College e doutor em Economia pela Princeton University. Comendador cultural, escritor e professor.


 

Na calada dos gabinetes, longe dos olhos e do sentir da Nação, o Congresso Nacional acaba de cravar mais uma adaga no coração já combalido da nossa democracia representativa. A aprovação do aumento do número de deputados federais de 513 para 531 não é um mero ajuste técnico; é a crônica de um distanciamento anunciado, um passo deliberado para afastar o poder ainda mais de seu titular de direito: o povo.


Esta medida, que aprofunda uma ferida antiga, nasce como uma reação insidiosa a uma decisão do Supremo Tribunal Federal que, pela primeira vez, ousou aplicar o preceito constitucional da proporcionalidade. O que deveria ser um ato de justiça — ajustar o número de deputados à população de cada estado — foi torcido e transformado em seu oposto. O resultado? O que já era ruim, ficou tragicamente pior.

A raiz dessa distorção é amarga e remonta a um tempo de sombras. O entulho autoritário do Pacote de Abril de 1977, criado para manipular a representação popular durante a ditadura, nunca foi devidamente removido. Seus alicerces tortos foram, infelizmente, cimentados na Constituição de 1988. A matemática da injustiça é clara e ofende a inteligência do cidadão: o estado de São Paulo, por exemplo, que abriga cerca de 22% dos brasileiros, tinha direito a apenas 13,6% das cadeiras na Câmara. Com a nova “solução”, esse número cairá para 13,1%. Em outras palavras, o voto de um cidadão em um estado continua, por lei, a valer menos que o de outro.

Essa desconexão numérica gera uma desconexão humana. Quando um parlamentar não deve satisfação direta a um eleitorado definido, quando seu nome se perde em uma lista infindável e sua campanha vagueia por um estado inteiro, para quem ele realmente governa? O grito das periferias, a necessidade do pequeno agricultor, a luta da pessoa com deficiência por acessibilidade e dignidade… tudo isso se torna um ruído distante, facilmente abafado pelo barulho dos interesses poderosos que financiam mandatos sem rosto e sem compromisso local.

É preciso ter a coragem de dizer o óbvio: o modelo atual faliu. E a solução não está em remendos que só alargam o rasgo no tecido social. A esperança reside em uma mudança estrutural, em uma ideia simples e poderosa: o voto distrital.

Imaginemos o Brasil dividido em distritos eleitorais com populações equivalentes. Em cada distrito, um único deputado seria eleito pelo voto majoritário. De repente, a política deixaria de ser um jogo abstrato de siglas e cores para se tornar uma realidade palpável, com nome e endereço. O eleitor saberia exatamente quem é o “seu” deputado. Seria como na vida da gente, onde cada um conhece o vizinho; sabe a quem pedir ajuda e, principalmente, a quem cobrar uma promessa não cumprida. A prestação de contas seria imediata, direta, pessoal.

Há quem tema, com uma lógica que não se sustenta, que o voto distrital apagaria as minorias do mapa político. Nada mais falso. É o sistema atual, opaco e distante, que as invisibiliza. Quando o poder de pressão do cidadão é real e focado, a cidadania ativa floresce. A comunidade, organizada, forçaria seu representante a lutar por políticas públicas de saúde, educação e inclusão que atendam às necessidades locais de todos, sem exceção. A verdadeira força das minorias não está em serem um nicho num sistema falho, mas em serem parte de uma cidadania fortalecida e vigilante.

O voto distrital não é uma panaceia, mas é uma ferramenta institucional indispensável. É a plaina que pode começar a acertar a madeira torta da nossa representatividade. É o caminho para edificar estruturas sociais verdadeiramente mais Democráticas, Inclusivas e Justas, onde o Congresso Nacional deixe de ser um clube fechado e volte a ser a casa do povo.

Essa decisão é um sintoma grave da doença. Mas em vez de nos abatermos, devemos encará-la como um chamado. Um chamado para pensarmos além do óbvio, para reacendermos a chama da esperança e para lutarmos por uma reforma que devolva, enfim, o poder a quem ele pertence. É hora de semear o futuro. É hora de devolver o Congresso ao seu verdadeiro dono: o povo brasileiro.


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