As denúncias de casos cruéis vêm crescendo, a Justiça ainda não encontrou os caminhos para amparar os injustiçados e a maior ilha fluviomarítima do mundo – equivalente à extensão de Portugal – continua à margem da própria sorte. Por outro lado, crianças prostituírem-se nas barcas que navegam pelos rios pode ser considerado comum.


Atualmente, no Brasil, há tantas formas de os transgressores das Leis se defenderem que o certo virou errado e vice-versa. O comportamento e as interpretações dadas pelo Judiciário às leis existentes, possivelmente precisariam de uma revisão, a fim de que as pessoas de bem pudessem manter os seus direitos constitucionais acima dos bandidos, o que na atualidade parece invertido. Ainda é possível imaginar que esses direitos estejam em vigência, mas diante de tantas dúvidas e a lentidão pelas quais passa o país, fica difícil acreditar.

Esta reportagem é sobre o comportamento moroso do judiciário e legislativo, quanto às denúncias públicas relatadas pelos habitantes locais que chegam da Ilha de Marajó. A demora para a tomada de providências pelos responsáveis para o cumprimento das leis, essa lentidão coloca a vida de mais pessoas em perigo, inclusive dos corajosos denunciantes.

Crueldade

Os casos relatados falam da venda – principalmente – das filhas pelos próprios pais, tráfico humano, abuso sexual contra crianças; até 2022, foram registrados 550 crimes sexuais na Ilha de Marajó, sendo 407 estupros de vulneráveis, todos contra crianças e adolescentes. Portanto, há dois anos no mínimo a situação estaria se repetindo. O fato de os pais venderem seus filhos devido à pobreza é conhecido, mas no arquipélago tomou proporções mais graves.

A colunista Anália Belisa Ribeiro, da IstoÉ Mulher, classificou como grave a situação em fevereiro deste ano. De acordo com o levantamento da revista, o Brasil ocupa o segundo lugar no ranking da exploração sexual de crianças e adolescentes, atrás apenas da Tailândia.

TV Aparecida / Instituto Humanitas Unisinos

Todavia, as denúncias são bem mais antigas. Ainda em 20 de abril de 2015, matéria do Instituto Humanitas Unisinos, durante a Assembleia Geral da Confederação dos Bispos do Brasil (CNBB), mostrou que em Aparecida-SP, a TV Aparecida transmitia documentários relatando a realidade da ilha, que na oportunidade tinha cerca de 300.000 habitantes.

A reportagem de Luis Miguel Modino, publicada em 18 de abril de 2015, já trazia relatos do bispo Dom José Luis Azcona, já à época em prelazia na Ilha de Marajó havia 30 anos:

“A violência e a criminalidade crescem de maneira alarmante, o que leva o bispo a afirmar que ‘se a federação não assumir a bandeira do Marajó, irá se afundar cada vez mais’ a ponto de dizer que ‘os cinco primeiros artigos da constituição brasileira não são aplicados no Marajó’. A manifestação disso é que ‘não há a defesa da dignidade humana, pois as crianças são traficadas, comercializadas, compradas e vendidas para o deleite sexual de monstros’ diante do descaso das autoridades. Estamos falando de um dos piores sistemas judiciários do Brasil, país em que a Justiça caminha a passos de tartaruga e quase sempre se esquece dos mais fracos. Os crimes na Amazônia, sobretudo aqueles em que se veem implicados os poderosos, quase sempre ficam impunes, o que leva muitos a afirmarem que ali a vida não vale nada.”

 

A senadora Damaris Alves, no plenário do Senado Federal há 11 meses. À época, a parlamentar informou que apresentaria requerimento solicitando que uma comitiva de senadores visitasse a Ilha do Marajó para avaliar o programa de enfrentamento à exploração sexual de crianças e adolescentes do atual governo. Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

 

Senado federal

Os relatos se estendem pela internet desde então. Eles já foram classificados de ‘fake news”. No entanto, no dia 26 de setembro de 2023, a senadora Damares Alves (Republicanos-DF) declarava em plenário as denúncias que chegaram a ela, através de mensagens de moradores do arquipélago do Marajó, no Pará, sobre o desaparecimento de uma criança de 2 anos na cidade de Anajás no dia 19. Segundo a senadora, “há indícios de que a menina tenha sido vítima do tráfico de crianças. Há rumores de que ela tenha sido vendida. Tem gente vendendo e negociando crianças? Isso não é brincadeira, isso é muito sério.”

Conforme a senadora declarou à Agência Senado, dados da ONU e do Conselho Federal de Medicina apontam cerca de 50 mil casos desde 2019, sendo que em 2023, nos meses de janeiro a julho, já foram registrados mais de 42 mil desaparecimentos. No dia 23 de fevereiro foi requerida a instalação de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) na Câmara dos Deputados para investigar as ocorrências na Ilha de Marajó, que foi instalada pelos parlamentares, depois de conseguirem as 171 assinaturas necessárias.

 

No destaque do mapa, a Ilha de Marajó. Extensão equivalente a Portugal. Imagens: Google Maps

 

CPI da Ilha do Marajó

“O tráfico acontece ao nosso lado e não sabemos identificar.” Segundo revelou à Agência Câmara, a coordenadora da Comissão Justiça e Paz (CJP) do Regional Norte 2 (Amapá e Pará) da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), irmã Marie Henriqueta Ferreira Cavalcante, “existe uma tolerância da sociedade civil, que contempla essa realidade e não a caracteriza como tráfico”, disse em audiência pública no mês de junho último, durante a CPI da Ilha do Marajó. Jurada de morte pelo seu trabalho, ela atribui essa calamidade “à falta de políticas públicas, de alternativas de trabalho e a desigualdade social fazendo com que as pessoas se submetam ao trabalho escravo pela promessa de uma vida melhor.”

Estes são apenas alguns relatos verídicos e não ‘fake news’, como querem os interessados na perpetuação dessa situação alarmante que coloca a realidade brasileira em um patamar muito distante daquele ocupado pela extensão do seu território ou pela sua posição econômica no cenário global. A situação na Ilha do Marajó, aonde foram criados os peculiares búfalos marajoaras, também é um exemplo vergonhoso da criação de monstros que descobriram sua fonte nas águas da impunidade.

A CPI ainda está em andamento.

 

O repórter Roberto Cabrini é intimidado durante reportagem para a TV Record divulgada no dia 25 de fevereiro de 2024. Ele mostrava a prisão de um suposto pedófilo. Imagem: TV Record / Reprodução

 


Destaque – Anajás, uma das cidades da Ilha de Marajó, aonde a impunidade leva a crimes bárbaros contra crianças e adolescentes. Foto: Prefeitura Anajás / Divulgação


Publicação:
Sábado | 31 de agosto, 2024


Leia outras matérias desta editoria

Atividade física está na rotina de 57% dos moradores de São Paulo, mostra estudo da Seade

Prática é mais frequente entre homens, pessoas mais jovens, com maior instrução e renda familiar. A Fundação Seade apresenta um novo estudo para avaliar os hábitos físicos da população residente no estado de São Paulo. De acordo com o mais recente...

Sesc Mesa Brasil completa 30 anos trabalhando contra a fome e desperdício, vídeo

Sesc Carmo, onde o programa teve início, celebra a data com exposição e oficinas culinárias gratuitas. A exposição apresenta ensaio fotográfico inédito de Luisa Macedo sobre a logística do programa, em seu papel de conectar doadores e instituições que...

Preservar memória das empresas é também uma questão de responsabilidade social

Por que uma empresa deve se preocupar com a preservação de sua história? Creio que ainda estamos construindo, enquanto sociedade, uma resposta adequada para essa questão. Por Viviane Morais* Durante muito tempo prevaleceu a ideia de que o acervo de uma...

Brasil – Ilha de Marajó: tráfico humano e crueldade contra crianças

As denúncias de casos cruéis vêm crescendo, a Justiça ainda não encontrou os caminhos para amparar os injustiçados e a maior ilha fluviomarítima do mundo – equivalente à extensão de Portugal – continua à margem da própria sorte. Por outro lado, crianças...

Revivendo Memórias, projeto traz alegria de volta às pessoas com Alzheimer – conheça e participe

Iniciativa pioneira no Brasil, o projeto Revivendo Memórias busca proporcionar momentos de alegria e engajamento social às pessoas portadoras da Doença de Alzheimer (DA). Nasceu da observação de médicos neurologistas da Faculdade de Medicina de...

Panorama da Acessibilidade Digital: no Brasil acessibilidade ainda é incipiente, aponta estudo

A pesquisa foi realizada pela Hand Talk em parceria com o Movimento Web Para Todos, entre os dias 26 de junho e 31 de julho de 2023. Participaram 647 entrevistados, entre executivos, pessoas com deficiência e especialistas no assunto. Apesar de o país ter...

Este lobo quer brincar ou atacar? Entenda as expressões faciais desses predadores

Observe bem o seu rosto. Estudo identifica sinais faciais sutis que ajudam a manter a harmonia dentro do bando. Quem estiver imaginando que podem ser parecidas com as expressões faciais dos seus primos, nossos amigos peludos, os cães têm menos expressões...