Domingo | 16 de abril, 2023

Entre as finalidades da Associação Paulista de Medicina, são prioritárias: promover a Saúde, bem como o desenvolvimento científico e técnico da Medicina; defender intransigentemente a ética profissional; e buscar excelência na formação médica.

Por José Luiz Gomes do Amaral*


É inadmissível aceitar que, para o exercício da Medicina no Brasil, alguém prescinda de certificação que ateste qualificação profissional válida, que não seja registrado e, portanto, não tenha sua prática sujeita à fiscalização pelo Conselho de Medicina do Estado onde esteja inserido.

Da mesma forma, é inconcebível oferecer formação médica dentro dos limites das Diretrizes Curriculares hoje vigentes sem atividade clínica supervisionada, o que inviabiliza programa de aperfeiçoamento em áreas onde não haja médico especialista que garanta a orientação a quem esteja em treinamento, nem equipamentos de Saúde apropriados.

Este é o trágico cenário do Programa Mais Médicos “II”, ou Medida Provisória 1.165, de 20 de março de 2023 (1).

Trata-se de versão “requentada” da proposta de 2013, baseada nos mesmos equívocos, premissas falsas e argumentos maliciosos da edição anterior. É um texto em que se confunde intencionalmente médico com “intercambista”, em um intercâmbio nada definido, no qual não se sabe com quem, nem como o intercâmbio é realizado; em que trabalho se mistura com treinamento e a especialização se faz sem supervisão de especialistas.

Faltam médicos no Brasil? Nada mais absurdo! Somos 562 mil em atividade (2). Proporcionalmente ao número de habitantes, encontramo-nos entre os Estados Unidos e o Japão (2). Graduam-se hoje quase 40 mil ao ano. Seremos muito em breve mais de 1 milhão de médicos em território nacional.

Já o sistema de Saúde sofre de insuficiente financiamento, expresso também pela ausência de postos de trabalho para médicos. Não há concursos públicos. Apenas discursos mentirosos sobre ofertas mirabolantes e jamais confirmadas. Mesmo nas grandes cidades, hospitais e serviços ambulatoriais próprios estão despovoados de médicos por falta de concursos públicos. Vagas, há muitas, não se beneficiam de reposição. As instituições filantrópicas (Santas Casas são exemplo triste desta situação) agonizam; atrasam, ou simplesmente não pagam seus médicos, por absoluta falta de recursos, sobretudo nos municípios pequenos.

O Programa Mais Médicos “I” – Lei 12.871, de 22 de outubro de 2013 (3) foi uma fraude, permitindo a abertura indiscriminada de faculdades e de vagas de Medicina, com o pretexto de atender vazios assistenciais. Abriu ainda a possibilidade do trabalho escravo cubano e da transferência de recursos públicos para governos daquela ilha. Tirou do médico acesso a direitos trabalhistas fundamentais.

A MP 1.165/20231 surge concomitante ao Decreto 11.440, de 20 de março de 2023 (4), que cria uma comissão interministerial voltada, entre outras atribuições, à definição de diretrizes para formação profissional na área superior em Saúde, bem como para a especialização em residência médica. Esta comissão é composta por considerável número de gestores públicos, estando dela excluídos os representantes da classe médica, como o Conselho Federal de Medicina e a Associação Médica Brasileira. Paira silêncio sobre o destino ou função da atual Comissão Nacional de Residência Médica.

Sobe o tom dos ideólogos do desvio de função (task shifting), iniciativa populista subscrita pela Organização Mundial da Saúde para uso na África, mas infelizmente implementada no Brasil. O desvio de função resume-se a atribuir a profissionais de menor custo atividades exercidas por profissionais de formação mais onerosa.

A (falsa) justificativa é a falta de profissionais mais qualificados. É evidente que isso não se aplica em um País com mais de 562 mil médicos. Até porque, hoje, poucas categorias profissionais são tão mal remuneradas quanto os médicos. Ninguém menciona que, em países desenvolvidos (como os EUA), médicos e todos os demais profissionais de Saúde distribuem-se da mesma forma nas diferentes regiões do País. Isto é, nas áreas mais desenvolvidas, onde há sistema de Saúde eficiente, possibilidade de educação para os filhos, desenvolvimento e satisfação profissional.

O último Revalida registrou os mais baixos índices de aprovação, 3,7% (5), expondo o risco que a vinda de “diplomados” não preparados representa para nossa população. O exame é o critério atualmente aceito para atestar a qualificação dos profissionais formados fora do Brasil, e esperamos que seja mantido imune a interferências espúrias e não se descaracterize.

Por outro lado, muitos dos alunos saídos das 353 escolas médicas em funcionamento (6) no território nacional não são submetidos a qualquer teste antes de receberem seus registros profissionais! É fundamental atentar para a avaliação dos formados aqui também e dar consistência à formação especializada.

Para todas as especialidades, existem matrizes de competências a serem alcançadas, dentro de programas aprovados e comparáveis com os realizados internacionalmente. O programa Mais Médicos “II” traz um obscuro caminho para a concessão do título de especialista e desestrutura e avilta a residência de Medicina de Família e Comunidade.

Vivemos tempos de grande insegurança. Acentuam-se as desigualdades. Os mesmos que propõem atenção precária à população carente jamais compartilhariam destas alternativas, sendo vistos na mídia assistidos apenas em instituições de primeira linha.

É fundamental esclarecer a desinformada, manipulada e desassistida sociedade brasileira. É urgente fazê-lo, não cabe perder tempo com falsas polêmicas.


*José Luiz Gomes do Amaral, presidente da Associação Paulista de Medicina


(1) https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2246112&filename=MPV%201165/2023

(2) https://amb.org.br/wp-content/uploads/2023/02/DemografiaMedica2023_8fev-1.pdf

(3) https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12871.htm

(4) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/D11440.htm

(5) https://g1.globo.com/saude/noticia/2023/04/01/revalida-tem-a-menor-taxa-de-aprovacao-em-11-edicoes-medicos-formados-no-exterior-apontam-falhas-e-pedem-mudancas.ghtml

(6) http://webpainel.cfm.org.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=radiografia%20do%20ensino%20medico%5Cradiografia%20do%20ensino%20m%C3%A9dico.qvw&lang=en-US&host=QVS%40scfm77&anonymous=true