Terça-feira, 17 de maio de 2016 às 03h43

UNESCO: Através dos esportes e oferecendo ao mesmo tempo outras oportunidades e orientações, a luta contra o abandono vem ganhando espaço. Objetivo é garantir que jovens tenham mais acesso a direitos como esporte e educação e não se envolvam com a criminalidade. Leia a reportagem especial da ONU Brasil sobre a conferência internacional “Esporte, Inclusão Social de Jovens e Prevenção da Violência”.

ONU Brasil | UNESCO

Cerca de 30% das escolas públicas do Brasil não possuem espaços adequados para a prática de esportes e, nas periferias, um jovem negro tem chances sete vezes menores de ingressar numa atividade esportiva do que uma pessoa branca da mesma idade e de classe média.

Os números – informados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) – revelam um cenário de desigualdade preocupante em um país que sediou recentemente uma Copa do Mundo e se prepara para receber os Jogos Olímpicos de 2016.

 

ONG Luta pela Paz foi criada em 2000 pelo britânico Luke Dowdney. Foto: Luta pela Paz

ONG Luta pela Paz foi criada em 2000 pelo britânico Luke Dowdney. Foto: Luta pela Paz

 

Apesar dos desafios – que a agência da ONU destaca não serem exclusivos do Brasil –, organizações da sociedade civil têm buscado soluções para as desigualdades no acesso ao esporte e a outros serviços em comunidades e regiões periféricas.

No dia 5 de maio, no Rio de Janeiro, a UNESCO e a entidade não governamental Luta pela Paz reuniram, na conferência internacional “Esporte, Inclusão Social de Jovens e Prevenção da Violência”, alguns dos criadores de iniciativas inovadoras – no Brasil e no mundo – que apostam no esporte para estimular o desenvolvimento de jovens e afastá-los de riscos como a criminalidade.

‘No Complexo da Maré, é uma luta todo dia’

Há quase 20 anos no Brasil, Luke Dowdney criou a Luta pela Paz em 2000 para mobilizar jovens da Maré em torno da prática artes marciais. Foto: UNIC Rio / Pedro Andrade

Há quase 20 anos no Brasil, Luke Dowdney criou a Luta pela Paz em 2000 para mobilizar jovens da Maré em torno da prática artes marciais. Foto: UNIC Rio / Pedro Andrade

Criada em 2000 no Complexo da Maré, na capital fluminense, pelo ex-lutador britânico Luke Dowdney, a Luta pela Paz levou para a comunidade o ensino de boxe e outras artes marciais a fim de mobilizar a juventude local em torno da prática de esportes.

“Quando eu criei a Luta pela Paz, esse movimento de esporte pelo desenvolvimento estava no início”, lembrou o fundador da organização.

“Eu acreditei que os valores do boxe – a disciplina, o respeito, a autoestima, todas as partes que um lutador bom tem que ter na luta – poderiam ser muito úteis para dialogar com jovens que estavam fora da escola, fora de projetos sociais.” Segundo Dowdney, cabe aos professores e treinadores transmitir essas virtudes aos alunos.

O ex-lutador explicou que, ao longo dos últimos 16 anos, a Luta pela Paz assumiu novas funções e criou programas de apoio e orientação para a população jovem da Maré, que recebe pelo projeto capacitação, educação, serviços de assistência social, aulas sobre cidadania e orientações para o mercado de trabalho.

“Estamos longe daquele dia em que pensávamos que abrir uma quadra de futebol ou uma (aula de) arte marcial no morro e que, simplesmente jogando bola ou fazendo luta, seria suficiente para resolver qualquer problema social.”

Para a diretora da Área Programática da UNESCO no Brasil, Marlova Jovchelovitch Noleto, projetos que apostam no esporte podem “mudar trajetórias” de jovens das periferias, mais vulneráveis à violência e com menos acesso a serviços. Foto: UNIC Rio / Pedro Andrade

Para a diretora da Área Programática da UNESCO no Brasil, Marlova Jovchelovitch Noleto, projetos que apostam no esporte podem “mudar trajetórias” de jovens das periferias, mais vulneráveis à violência e com menos acesso a serviços. Foto: UNIC Rio / Pedro Andrade

O sucesso da experiência brasileira – que atende mais de 2,5 mil pessoas por ano – levou à abertura de uma filial da organização em Londres e à formação de uma rede global de 135 parceiros que reproduzem o modelo da Luta pela Paz em 25 países, alcançando mais de 250 mil crianças e jovens.

“No Complexo da Maré, é uma luta todo dia”, ressaltou a coordenadora do projeto Atletas pela Paz e ex-aluna da ONG, Ana Caroline Belo. A integrante da organização chamou atenção para as violações de direitos humanos recorrentes da parte da polícia e de traficantes e para a alta taxa de mortalidade entre os jovens, principalmente os homens.

“O tempo todo, essa molecada é aliciada (pelo tráfico). Mas eles são guerreiros pelo fato de optar por fazer um esporte e conseguir acessar outras oportunidades,” disse Belo. Com a Luta pela Paz, “o jovem não fica conhecido por portar armas, mas por levantar luvas ou usar quimono.”

Também presente no evento, a diretora da Área Programática da UNESCO no Brasil, Marlova Jovchelovitch Noleto, enfatizou que, infelizmente, as mortes de jovens brasileiros possuem uma “geografia, gênero, raça e escolaridade” específicos, vitimando rapazes de comunidades que “ora são agentes, ora são vítimas” da violência.

A trajetória dessa parcela da população, porém, “pode ser mudada, se a intervenção for adequada” através de projetos como a Luta pela Paz – parceira da UNESCO que já recebeu apoio tanto institucional, quanto financeiro da agência da ONU.

Um relatório recente da especialista independente sobre minorias do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH) revelou que, dos 56 mil homicídios registrados a cada ano no Brasil, cerca de 23 mil têm, como vítimas, negros de 15 a 29 anos de idade. Muitas dessas mortes são perpetradas por agentes do Estado, frequentemente pelo aparato da política militar.

Educação e orientação chegam a jovens pelo esporte

Carlos Eduardo Viana também foi aluno da Luta pela Paz. Hoje, aos 33 anos, o estudante de Pedagogia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) conta que o processo de aprendizado criado pela organização o incentivou a retomar os estudos.

“Eu estava há dez anos fora da escola e voltei para estudar no fundamental, fiz o (ensino) médio”, explicou. Na Luta pela Paz, “o espaço escolar e a metodologia de ensino eram totalmente diferentes do que eu tinha na sala de aula formal”, disse o rapaz.

 

Carlos Eduardo conduziu as atividades da conferência internacional. Ele é ex-aluno da Luta pela Paz e retomou os estudos inspirado pela experiência que teve com a instituição. Foto: UNIC Rio / Pedro Andrade

Carlos Eduardo conduziu as atividades da conferência internacional. Ele é ex-aluno da Luta pela Paz e retomou os estudos inspirado pela experiência que teve com a instituição. Foto: UNIC Rio / Pedro Andrade

 

Carlos lembra que a luta lhe permitia “descarregar a vergonha e a ansiedade” que sentia por ter voltado a estudar aos 28 anos. “Eu ia para a sala de aula totalmente calmo. Na paz mesmo. O boxe para mim era como se fosse uma meditação.”

“Eu queria, na verdade, aprender a me defender”, disse outra aluna do projeto, Joyce Rocha, sobre os motivos que a levaram a frequentar a organização há 5 anos para aprender boxe. Apesar do interesse pela luta, outros motivos fizeram com que ela “se apaixonasse” pela Luta pela Paz.

“Além do esporte, eles davam importância ao desenvolvimento pessoal. Eu nunca entrei num espaço em que eu pudesse conversar, falar de mim, da minha comunidade, falar de política, das coisas que acontecem no Rio, no Brasil, no mundo. Foi um espaço onde a gente pôde ser protagonista e isso me levou a estar no grupo até hoje.”

Para o oficial de Programa da UNESCO Fábio Eon, um dos desafios das Nações Unidas é “tentar pensar programas e políticas de governo relacionados ao esporte que não sejam tão cíclicos”, associados a competições mundiais ou a esportes de alto rendimento.

“Que a gente não tenha (apenas) um grande evento como foi a Copa do Mundo ou como as Olimpíadas e, depois, passaram-se quatro anos de silêncio sem pensar nas políticas esportivas que sejam em prol da sociedade”, destacou o representante da agência da ONU.

Projetos semelhantes na Colômbia e na Inglaterra

A conferência internacional contou com a participação ainda do Grupo Internacional de Paz (GIP) da Colômbia – organismo presente em 80% dos departamentos do país, promovendo aulas de esporte e conscientização sobre a violência associada ao narcotráfico.

Para a representante do projeto, Beatriz Mejia, a ideia da iniciativa não é enxergar o esporte como “uma panaceia” – que poderia retirar “do dia para a noite” jovens colombianos de “circuitos de ilegalidade” –, mas sim penetrar, aos poucos, as esferas da sociedade dominadas pelo tráfico de drogas. Muitos alunos vêm de famílias envolvidas em atividades ilícitas.

 

Conferência internacional reuniu representantes e criadores de diversas iniciativas que buscam, no esporte, formas de promoção dos direitos e do desenvolvimento de jovens. Foto: UNIC Rio / Pedro Andrade

Conferência internacional reuniu representantes e criadores de diversas iniciativas que buscam, no esporte, formas de promoção dos direitos e do desenvolvimento de jovens. Foto: UNIC Rio / Pedro Andrade


Outra instituição presente foi a britânica SwitchUp, que atua em Nottingham na Inglaterra. O organismo – dividido em uma escola de boxe e uma organização de assistência – oferece aulas da luta e também capacitação e aconselhamento sobre emprego para alunos em idade escolar, jovens que já cometeram crimes ou que são afetados por gangues.

Segundo o fundador da iniciativa, Marcellus Baz, um dos objetivos é “quebrar” o ciclo vicioso em que rapazes não conseguem encontrar trabalho por conta de seu histórico de infrações e acabam retornando à criminalidade.

Em Nottingham, na Inglaterra, Marcellus Baz criou um projeto de esporte e capacitação voltado para jovens que já cometeram crimes. Foto: UNIC Rio / Pedro Andrade

Em Nottingham, na Inglaterra, Marcellus Baz criou um projeto de esporte e capacitação voltado para jovens que já cometeram crimes. Foto: UNIC Rio / Pedro Andrade

“Nós começamos (esse trabalho), porque eu vim de uma área de privação, de uma vida onde todos estavam envolvidos com drogas. Esfaqueamentos e tiroteios eram uma normalidade”, contou.

Baz encontrou no boxe uma fuga da violência, mas no início de sua trajetória como lutador, levou uma facada de um rival de um grupo criminoso – o que o fez perder parte dos movimentos da mão, pondo um fim à sua carreira.

“A primeira vez em que alguém me disse ‘muito bem!’ em toda a minha vida” foi num ringue de boxe, lembrou o ex-lutador, que busca agora reproduzir sua experiência pessoal com outros jovens da cidade inglesa e ensinar valores como disciplina e respeito, que auxiliam no convívio social.

O professor Cristiano inspeciona os alunos durante os abdominais. Foto: aloimage

O professor Cristiano, do Projeto Social Samurais da Leste, inspeciona os alunos durante os abdominais. Foto: aloimage

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A redução da pobreza é um dos eixos da agenda de desenvolvimento pós-2015. Crianças na favela de Kallayanpur, uma das favelas urbanas em Daca, Bangladesh. Foto: ONU/Kibae Park

A redução da pobreza é um dos eixos da agenda de desenvolvimento pós-2015. Crianças na favela de Kallayanpur, uma das favelas urbanas em Daca, Bangladesh. Foto: ONU/Kibae Park

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