Estamos publicando uma série de reportagens sobre o Sertão de Itamambuca, norte de Ubatuba. Acompanhe.
A presença caiçara é natural, constante e está plenamente materializada no Sertão de Itamambuca, assim como em toda a extensão que vai do litoral fluminense, passa por São Paulo e chega ao Paraná.
Incra responde sobre “ônus da escravidão”. Veja mais abaixo.
Símbolo encontrado na entrada da cidade de Ubatuba, o caiçara está intimamente ligado ao mar; possui costumes, danças e cultura próprias. Essa população soube preservar a natureza e trabalha para manter suas tradições. Apesar das pressões que vem sofrendo, a cultura caiçara continua sendo transmitida de geração em geração.
O trabalho de conclusão do curso de Gestão de Projetos Culturais e Organização de Eventos, sob orientação da Profa. Dra. Fabiana Amaral, elaborado por Camila Ferreira Marujo — Cultura Caiçara, cotidianidade e oralidade: os artesãos da Casanga – CELACC/ECA-USP 2012 – atual integrante do Conselho Municipal de Política Cultural (CMPC) de Ubatuba –, comprova a presença do caiçara no Sertão de Itamambuca, também conhecido como Casanga.
“Após um período turbulento de grandes acontecimentos históricos, a cultura caiçara em Ubatuba brotou silenciosamente, protegida pela serra do mar e suas densas matas. Durante séculos, desenvolveu-se quase sem ser notada, absorvendo todo tipo de gente, ignorando raças, credos e origens, esquecida pelos ciclos de crescimento econômico do país”, afirma o estudo.
Naturalmente, como acontece até hoje, a convivência entre os descendentes dos escravizados e os caiçaras continua gerando vínculos sociais e afetivos. Portanto, é difícil separá-los.
“As comunidades caiçaras são fruto da miscigenação entre os indígenas, colonizadores portugueses e negros, ocupando a área situada entre o sul do litoral paranaense e o sul do litoral fluminense. Essas comunidades têm um modo de vida particular que associa a pesca, a pequena agricultura, o artesanato e o extrativismo vegetal, tendo desenvolvido tecnologias patrimoniais, um conhecimento aprofundado sobre os ambientes em que vivem, danças e músicas, além de um vocabulário exclusivamente local (Centro de Estudos Caiçaras – CEC NUPAUB – USP)”.
Constituição de 1988 e os Quilombos
De acordo com a Carta Magna, o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) diz o seguinte: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos.” A autoidentificação está em sintonia com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT. Essa Convenção foi ratificada pelo Congresso Nacional, através do Decreto Legislativo nº 143, de 20 de junho de 2002, enquanto o constituinte e presidente Fernando Henrique Cardoso exercia seu mandato.
Em 2004, o também constituinte, Lula, assume a presidência da República, e promulga o Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004, “apresentando status constitucional, uma vez que foi aprovado seguindo o rito equivalente às emendas constitucionais (art. 5º, §3º da CF/1988)”, descreve o Incra.
Para que haja uma reivindicação de território, a comunidade deve se autoidentificar, sendo esse o primeiro passo para reivindicações futuras. Como de fato, isso foi feito pelos quilombolas do Sertão de Itamambuca, e reconhecido pela Fundação Palmares em 2006.
Governo quer transferir dívida com a escravidão aos caiçaras
Todavia, existem diversos fatores nessa localidade que inviabilizam a necessidade que o país possui para sanar suas dívidas com os escravizados e seus descendentes. São as famílias de caiçaras tradicionais, residentes no local há mais de um século. A impressão que se tem é de que o governo brasileiro simplesmente se esqueceu disso, quanto à área reivindicada à qual pretende entregar ao quilombo.
A lei da Abolição da Escravatura foi sancionada pela princesa Isabel no dia 13 de maio de 1888, após mais de três séculos de trabalho forçado. “O Brasil foi o último país do Ocidente a abolir a escravidão. Às vezes as pessoas falam que foi o último das Américas, mas não. De fato, era chamado na época de retardão”, disse a historiadora Lilia Moritz Schwarcz em entrevista à BBC Brasil no Rio de Janeiro, em maio de 2018. Devido aos movimentos negros entre os constituintes, a Constituição de 1988 tentou reparar o irreparável, com compensações aos descendentes dos escravizados. “As consequências dessa virada de página abrupta, sem políticas para incluir os ex-escravos à sociedade, são sofridas até hoje”, salientou Schwarcz à BBC.
Essa longa história de injustiças recai agora sobre a população miscigenada que originou o tradicional caiçara, que sofre com a subempregabilidade e diversas carências sociais, de saúde ou infraestruturais no Sertão de Itamambuca, das quais estamos mostrando algumas peculiaridades, nesta série de reportagens.
Se tudo isso não bastasse, o Incra ameaça tomar suas moradias – o único bem que conseguiram com o suor do trabalho duro e pesado. Continue acompanhando as reportagens e conheça como vivem e o que pensam os caiçaras sobre essa questão.
DIREITO DE RESPOSTA AO INCRA
NOTA DA REDAÇÃO
Em primeiro lugar agradecemos ao Incra por ter interesse em esclarecer a população.
Sobre a afirmação de ignorarmos “a relação de parentesco e ancestralidade entre caiçaras e quilombolas”. O texto que consta na matéria já demonstra que esse detalhe não foi ignorado, ao contrário: “Naturalmente, como acontece até hoje, a convivência entre os descendentes dos escravizados e os caiçaras continua gerando vínculos sociais e afetivos. Portanto, é difícil separá-los”, reconhece o texto da reportagem. Afirmações com esse teor foram repetidas em outras reportagens da série.
O ônus histórico em referência existe, a partir do momento em que famílias caiçaras podem ser desapropriadas para favorecer os quilombolas, já que a demarcação busca uma compensação pelos danos causados pela escravidão. A questão maior a ser abordada, como é feito e repetido nas matérias publicadas, é que não existem dois grupos (quilombolas e não-quilombolas), apenas opções por culturas diferentes. Ambos convivem há mais de um século no mesmo espaço, social e afetivamente.
Conforme declarações de moradores do Sertão de Itamambuca, entre as famílias que não pertencem ao grupo dos quilombolas, as animosidades começaram desde que suas moradias e seu modo de vida foram colocados em risco, com a reivindicação de áreas onde residem pelos quilombolas. Várias áreas reivindicadas na atualidade por eles outrora foram vendidas a essas famílias pelos próprios quilombolas. Essas famílias não são grandes proprietárias de terras, basicamente possuem baixa renda. A Associação Quilombo foi criada em 2005 e sua autodeclaração foi reconhecida em 2006 pela Fundação Palmares.
Estivemos no local durante 19 dias e conversamos com todos os envolvidos nesta questão, que está causando um enorme impacto social, psicológico e financeiro àqueles que não se autodeclaram quilombolas, mas são reconhecidamente integrantes da Cultura Caiçara formadora da própria população de Ubatuba. Portanto, promovemos um amplo debate. Vários depoimentos poderão ser vistos nas próximas publicações. Aqueles que não quiseram se manifestar durante nossos abordagens, ainda podem fazê-lo. Será muito positivo ouvir todos que assim desejarem (email: contato@alotatuape.com.br).
Devido a todos esses fatos, essa situação que está sendo levada a público merece um olhar mais atento. Essa é a responsabilidade do portal que conquistou e preserva sua credibilidade desde 1993.
Solicitamos uma reunião com a Superintendência do Incra em São Paulo, para nos esclarecer melhor sobre o que seriam “informações distorcidas, etc.”. Além disso, seria importante ouvir o atual superintendente, Sabrina Diniz, depois de informá-la a respeito dos fatos atuais.
Destaque – O Rio Itamambuca nasce nas montanhas próximas a São Luiz do Paraitinga. Ele desce as encostas da Serra do Mar e desemboca na Praia de Itamambuca, na cidade de Ubatuba. Foto: aloimage