Situação mostrada nesta série de reportagens sobre o Sertão de Itamambuca, norte de Ubatuba, coloca em xeque a administração pública que pretende desalojar famílias caiçaras. Acompanhe.

Um artigo* apresentado como Trabalho de Conclusão de Curso de História da Universidade do Vale do Paraíba – Univap, comprova a presença do caiçara no território quilombola delimitado pelo Itesp no Sertão de Itamambuca. No levantamento junto à Comunidade de Remanescentes de Quilombo, foi constatado também o caiçara entre os quilombolas e vice-versa, há mais de 100 anos.


Pesquisa realizada a partir de 1º de maio de 2007, discorreu sobre as propriedades de Modesto Antônio Barbosa, no Sertão de Itamambuca e a permanência de escravizados na sua fazenda de café, após a Abolição. Os ex-escravos trabalhavam “sob a condição do pagamento de renda na forma de dias trabalhados”, escreveram as pesquisadoras.

“Conforme certidão obtida no Setor de Paleografia do Arquivo Estadual de São Paulo, lavrada em 28 de maio de 1856, o senhor Modesto, descreve suas terras da seguinte forma: ‘O abaixo assignado possue huma posse de terras no lugar denominado: Itamonbuca, destricto desta cidade no lugar chamado Itojemirim, quatrocentas e cincoenta braças testadas mais ou menos, com suas vertentes… Possue mais outra posse, no lugar chamado Sacco Grande cento e quarenta braças mais ou menos de testada… Possue mais outra posse, no lugar chamado: Engenho Velho, cincoenta braças de testada mais ou menos… Possue mais quatro braças na barra do mesmo Itamombuca. Ubatuba vinte e oito de Maio de mil oitocentos e cinqüenta e seis. Modesto Antonio Barbosa. O Vigário José Manoel da Conceição (CERTIDÃO/APESP, 2005)’.”

O artigo traz outra informação importante

“Existe, ainda, o relato de um caiçara, tal pessoa não possui relação com a comunidade, mas seu conhecimento histórico foi fundamental para nossa pesquisa. Nos informou que reside na região há 66 anos. Sua família foi pioneira no bairro Itamambuca. Na região não existia estrada, apenas ‘picada’ no meio da mata, na cidade não havia médico, existindo apenas algumas moradias. Seu pai faleceu ao completar 106 anos e sempre moraram nas imediações da sede da Fazenda do Modesto, a poucos metros de distância. Nos contou que a maioria dos seus amigos, bem como um tio deste, chamado “Passidina”, moravam na fazenda e, quando tinha aproximadamente 10 anos de idade, brincava com esses amigos nos cômodos da casa. Tinha os quartos de separação, segundo seu pai contava, ali era onde os escravos moravam e trabalhavam”, descreve o estudo.

Outro detalhe informado no trabalho das pesquisadoras é o que consta no artigo, apresentado durante o XI Encontro Latino-Americano de Iniciação Científica e VII Encontro Latino-Americano de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Paraíba: “Conforme relatos do seu pai, os escravos desciam em direção à praia utilizando burros para buscarem mariscos da pedra, naquele tempo a comida era escassa”.

Reflexão

Se buscavam mariscos, nada os impediria de pescar. Portanto, se esta situação fosse levada em conta na reivindicação dos quilombolas do Sertão de Itamambuca, o território poderia chegar até a praia. Como exemplos, temos as comunidades da Caçandoca e do Camburi, onde os escravizados pescavam para suprir sua alimentação. Esse costume está enraizado nas suas origens e nas origens caiçaras.

Todavia, a comunidade quilombola do Sertão de Itamambuca e o Incra preferiram chegar até os limites da Rodovia Rio-Santos que, como descrito, nem existia. Deixando intocada a área que chega até a Praia de Itamambuca, onde existem moradias de luxo e comércio que empregam a maioria dos quilombolas. Questionamos se o motivo seria não importunar essa fonte geradora de empregos, ou seja, seus atuais patrões, local onde trabalham e tiram o sustento.

Formado por casas de veraneio de alto padrão, o Condomínio Itamambuca necessita de constante atenção. Esses serviços gerais são prestados lado a lado, tanto pelos quilombolas quanto pelos caiçaras, que exercem funções das mais variadas.

Paradoxo

Por conseguinte, nota-se aqui um paradoxo. Se essa injusta situação avançar, deveria seguir até a areia da Praia de Itamambuca, desapropriar também os proprietários das luxuosas casas de veraneio e o comércio ali existente. Dessa maneira, os descendentes locais dos escravizados – que colhiam e pescavam para seu sustento – teriam a justiça que determina o Incra, porém perderiam sua fonte de renda, assim como os caiçaras que o órgão pretende desapropriar.

Esta situação bizarra coloca em xeque a solução do governo federal, tentando reparar sua dívida escravocrata. O Incra, por meio do estudo do Itesp, da maneira como se apresenta, utiliza injustamente pesos e medidas diferentes, causando o consequente desequilíbrio social que estamos acompanhando. Continue assistindo nas próximas reportagens.

 

 


*Artigo apresentado como Trabalho de Conclusão de Curso de História, das graduandas em História da Universidade do Vale do Paraíba – Univap, Rita Bernardo Barros e Giovana Carla Oliveira – co-orientadas pelo Professor Doutor na UFPE / Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Denis Antonio de Mendonça Bernardes e orientadas pela Professora Mestre Univap, Valeria Regina Zanetti Almeida.


Destaque – Imagem: aloart / GI


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