Em xeque, diversos níveis da administração pública no Brasil.

Através dos séculos, após a colonização, nas áreas litorâneas paulista, fluminense e paranaense, desenvolveu-se a cultura caiçara. As culturas agrícolas de café e cana-de-açúcar necessitavam de mão-de-obra e, no Brasil, assim como em outros países, durante um longo período, esse trabalho foi feito pelos escravizados trazidos da África. O caiçara nasceu da miscigenação entre os nativos brasileiros, os europeus e os afrodescendentes.


Como parte de suas atribuições, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão vinculado ao governo federal, orienta e ampara os descendentes de escravizados por meio de normas, leis e decretos. Eles também se autodefinem como quilombolas – pessoas que residem em um quilombo ou possuem ancestralidade com a etnia.

As reportagens que veremos a seguir tratam do tema com a seriedade que envolve mais de 200 famílias de moradores caiçaras, preocupadas com a possível desapropriação de suas casas, que não contam com essas benesses federais e podem perder suas moradias a partir de uma decisão do órgão; a favor da demarcação e titulação de uma área a ser destinada aos quilombolas do Sertão de Itamambuca, no balneário de Ubatuba, em São Paulo.

Atualmente, só no estado de São Paulo existem 27 processos em andamento para titulação de quilombos. Outra tabela do Incra, mostra mais 16 processos. Os dados são confusos, os processos extremamente morosos.

De qualquer forma, um desses processos, que trata de uma área reivindicada por quilombolas no Sertão de Itamambuca, está causando um grande impacto social entre estes e os caiçaras. A localidade fica a noroeste, no lado oposto à Praia de Itamambuca – onde existe um condomínio de casas de veraneio luxuosas e local de eventos famosos do mundo do surf.

Nesse condomínio, a maioria dos moradores do Sertão de Itamambuca trabalha lado a lado, exercendo diversas funções e dali tirando o seu sustento, sejam eles quilombolas ou caiçaras.

Leia todas as reportagens

Entretanto, um estudo produzido em 2008 pela Fundação Instituto de Terras (ITESP), vinculado ao governo do estado de São Paulo, parece ignorar a presença e as origens do caiçara no Sertão de Itamambuca; população original e formadora da cidade de Ubatuba. Desse modo, o Incra impôs, de forma desfavorável, a essa gente simples, uma parafernália jurídica e lhes concedeu 90 dias, a partir do dia 21 de janeiro, para defenderem suas posses.

Enquanto isso, o processo favorece amplamente as famílias quilombolas quanto à demarcação de uma grande área que, por consequência, irá desapropriar as moradias dos caiçaras e tudo aquilo que conseguiram durante gerações.

 

Homenagem ao Caiçara e sua cultura na entrada do balneário de Ubatuba, SP. Foto: aloimage

 

Mais de 200 famílias caiçaras podem prejudicadas

São mais de 200 famílias de caiçaras habitantes no local, formadas por aproximadamente 725 pessoas. Literalmente, estão perdendo o sono e tendo seus dias preenchidos com preocupações, além do trabalho duro que exercem – como pedreiros, pintores, faxineiras, cozinheiras, jardineiros e outros tipos de serviço gerais – maciçamente no Condomínio de Itamambuca.

Separando as pessoas que ali convivem, o Incra criou dois grupos: quilombolas e não-quilombolas, assim chamados pela instituição governamental. Aos primeiros, pretende-se fornecer em torno de 443 hectares de terras que beneficiarão 30 famílias e 353 pessoas no local, de acordo com o estudo de 2008 – atualmente, avalia-se em 100 famílias quilombolas. Aos demais, o peso de um processo federal que pode levar à desapropriação de suas moradias a título de uma suposta indenização ou de interesse social.

Presença caiçara legítima

Isso parece bastante injusto, já que essas famílias caiçaras habitam o Sertão de Itamambuca ao lado dos quilombolas, casaram-se entre todos e seus descendentes cresceram juntos. Se isso não fosse o bastante, parte das 200 famílias comprou seus pequenos lotes e os pagou aos próprios quilombolas. Foi o que disseram todos os entrevistados pela nossa reportagem, como veremos.

Portanto, depois de coabitarem no mesmo local, comprovadamente por mais de um século, o governo brasileiro, através do Incra, resolve desalojar os caiçaras para quitar parte de sua dívida escravocrata – o país foi o último a abolir a escravidão.

Após 90 dias, a partir de uma decisão do atual presidente do Incra, César Fernando Schiavon Aldrighi, que em seguida pedirá a assinatura do atual presidente da República, Luís Inácio da Silva, Lula, poderão ter início os processos de desapropriações.

Sinteticamente, é assim que funciona o processo, com o qual os caiçaras não concordam e pretendem permanecer em suas casas. “Conquistadas com muito suor e trabalho”, declaram.

Leia, a partir deste sábado (8/3), a continuação da série de reportagens que envolve essa faceta sinistra da cobiça em um dos paraísos balneários brasileiros.


Destaque – Placa fixada na entrada, sem pavimentação, da antiga Estrada da Casanga. Foto: aloimage


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