Segunda-feira, 6 de junho de 2016, às 16h29


Acessibilidade: Nesta manhã em que todas as estações do ano já se manifestaram no Tatuapé, inclusive a chuvosa, tive a oportunidade de conduzir um cadeirante por algumas dezenas de metros e percebi o quanto sou privilegiado.

CRÔNICA | Gerson Soares

Rapidamente, alguém diria: Sim, você tem duas boas pernas e pode andar para onde quiser, por isso é privilegiado. Mas não é só por essa razão que os “andantes” como eu são privilegiados perante os cadeirantes, o motivo é que apesar de termos condições de subir escadas, o meio fio, contornar obstáculos rapidamente (como vasos, adornos e até postes que estão em nosso caminho), ainda temos todas as construções da cidade e as legislações a nosso favor.

Trocando em miúdos, as exigências atuais e o uso da palavra “acessibilidade” que se aplica às diversas leis criadas recentemente e outros tantos temas que tentam mostrar as dificuldades de quem usa uma cadeira de rodas para se locomover, não são respeitadas como deveriam.

 

Origami que representa a ave Grou, feito pelo Zé Carlos, entre os solavancos do caminho na distância das ruas Azevedo Soares e Euclides Pacheco. O Grou ou Tsuru (em japonês) é uma ave sagrada do Japão. Símbolo da saúde, também traz boa sorte, felicidade, longevidade e fortuna. Foto: aloimage

Origami que representa a ave Grou, feito pelo Zé Carlos, entre os solavancos do caminho na distância das ruas Azevedo Soares e Euclides Pacheco. O Grou ou Tsuru (em japonês) é uma ave sagrada do Japão. Símbolo da saúde, também traz boa sorte, felicidade, longevidade e fortuna. Foto: aloimage

 

Encontrei um cadeirante tentando atravessar a Rua Azevedo Soares esquina com a Rua da Saudade, por volta das 10h da manhã de hoje e percebendo sua dificuldade perguntei ao Zé Carlos, se ele gostaria que eu o ajudasse – esse é o nome dele. Curioso, também quis saber para onde ele estava indo, e fui informado de que o seu destino era o Posto do INSS que existe a uma quadra dali, na Rua Euclides Pacheco. Respondi que estava indo na direção oposta, mas cumpri o objetivo de ajudá-lo a transpor a insensibilidade dos motoristas – que logo pararam quando me viram empurrando a cadeira de rodas com o amigo ali sentado.

Logo ao descer a primeira guia rebaixada de garagem quase o derrubei e ao chegar ao outro lado da rua ele já me avisou: "Nem tente subir a guia, tem que ser pela rua mesmo", advertiu. Quando ouvi isso resolvi levá-lo até o seu destino. Seguindo a indicação fui em frente pela rua e não pela calçada em direção à Rua Serra de Juréa, onde virei à esquerda com o cadeirante. Motorista que sou, queria sair rapidamente da rua, pois conheço os perigos.

Na primeira oportunidade de outra guia rebaixada de garagem embiquei a cadeira do amigo para acessar a calçada e desta vez quase o arremessei para fora do assento. Foi então que percebi as pequenas rodas da frente da cadeira e os poucos centímetros que os pés imóveis do Zé Carlos ficavam do chão. A sensação é de que tanto o apoio que os sustenta quanto os pés dele, propriamente ditos, iriam esbarrar no solo a qualquer segundo. Mesmo assim, tentando contornar a minha própria ignorância com algumas palavras de desculpas, continuei pela calçada já no sentido da Rua Euclides Pacheco.

Descobri porque o Zé Carlos sugeriu que eu fosse pelo meio fio, fora da calçada onde os “andantes” privilegiados podem desviar de qualquer obstáculo, mas não um cadeirante. As calçadas são onduladas, possuem degraus, raízes de árvores que erguem o cimento e mais uma infinidade de detalhes que sempre passaram despercebidos para mim. Nessa pequena caminhada de pouco mais de 150 metros aproximadamente eu e o meu amigo tivemos que fazer peripécias em diversos ângulos e graus para conseguir transpor a distância da Rua Azevedo Soares até a Rua Euclides Pacheco – pela calçada da Rua Serra de Juréa.

Um cadeirante sozinho não conseguiria percorrer esse trajeto – que não possui raízes de árvores, postes no meio da calçada, vasos ou mesas de bares e poderia ser considerada como “bem cuidada”. Certamente a cadeira de rodas tombaria e o exporia a um constrangimento, já que suas pernas não se movem da cintura para baixo.

Finalmente, atravessamos e chegamos à entrada do Posto do INSS e subimos pela rampa. Antes, eu quase derrubei o Zé de novo: tanto para descer da calçada quanto para acessar o outro lado. Logicamente que o amigo levou vários trancos e a essa altura eu estava imaginando que ele teria preferido ir sozinho. O problema é que mesmo com as guias rebaixadas as cadeiras de rodas não proporcionam segurança ou flexibilidade para transpor essas pequenas diferenças entre o solo (asfalto ou meio fio) e a calçada. Nos acessos corretamente elaborados para cadeirantes não há essa diferença.

Ao chegarmos o cadeirante já cumprimentava alguns funcionários do posto desde a entrada até a porta de acesso. Ao subirmos a rampa ele perguntou meu nome e eu o dele. Antes de se despedir me entregou um presente. Mesmo quase sendo arremessado da cadeira de rodas umas cinco ou seis vezes, fazendo contorcionismos para transpor as ondulações e deformidades da calçada, sendo conduzido por mim, um principiante no assunto, o Zé conseguiu criar beleza e harmonia nesse pequeno espaço de distância e tempo.

Voltei para o mesmo local onde havia conhecido o cadeirante, segurando com dois dedos o meu presente, uma obra que expõe toda a sensibilidade que ainda preciso alcançar e estou pensando até agora nos meus privilégios. Como prêmio ganhei um origami!

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