:: Hospedaria em Quarentena: A espanhola malquista


Da equipe do Museu da Imigração

“Corriam boatos apavorantes a respeito desse hospital improvisado, onde – murmuravam – só se recebiam os pobres bem pobres e o tratamento era o que devia ser, porque pobre bem pobre não é bem gente. De modo que nada apavorava tanto o povinho miúdo como ir para a Imigração. Assim, ao voltar da rua e saber do acontecido, Isaura estarreceu. Foi como se o próprio inferno houvesse aberto as goelas e engolido os adorados doentes. Quem zelaria por eles?” [1]

O trecho acima, retirado de um conto de Monteiro Lobato, apresenta uma cena que, entre os meses de outubro e dezembro de 1918, fazia parte do cotidiano dos habitantes dos bairros do Brás, Mooca e Belenzinho. Naquele período, o hospital citado era, junto com a Santa Casa, o maior da cidade de São Paulo (com capacidade para, aproximadamente, mil leitos) e foi improvisado na Hospedaria de Imigrantes do Brás. Acostumado a receber imigrantes, o edifício foi obrigado a matricular também uma visitante indesejada: a gripe espanhola.

Apesar do nome, a doença não tinha relação com os imigrantes espanhóis. Uma das hipóteses para que a batizassem desse modo tem relação com o contexto do seu aparecimento. Surgida, provavelmente, em campos de treinamento militar nos Estados Unidos, a influenza (como também era conhecida) se espalhou pelos campos de batalha europeus durante a Primeira Guerra Mundial. A doença passou a dizimar os soldados, todavia as notícias sobre esse fato foram, de certa forma, censuradas pelos países participantes do conflito. O mesmo não ocorreu com a Espanha, país neutro, que passou a noticiar os casos de influenza. Assim sendo, a gripe tornou-se “a espanhola”.

Há um entendimento geral de que a gripe espanhola contou com três surtos entre os anos de 1918 e 1919, sendo o segundo (entre agosto de 1918 e fevereiro de 1919) de caráter pandêmico, mais mortal e o que afligiu o Brasil com maior violência. Os primeiros doentes chegaram aos portos brasileiros possivelmente a bordo do navio Demerara, que havia partido de Liverpool e feito escalas em Lisboa, Recife, Salvador e Rio de Janeiro[2]. Dessas cidades a virulência se espalhou rapidamente para todas as regiões do país.

Em São Paulo acredita-se que a doença chegou no começo do mês de outubro. No dia nove foram detectados alguns homens gripados no Hotel d’Oeste, no largo de São Bento, pertencentes a um clube de futebol do Rio de Janeiro. Cinco dias depois, 14 de outubro, foi declarado estado epidêmico na capital paulista[3]. O que se viu nos dois meses seguintes foram cenas jamais vistas na “terra da garoa”.

A cidade inteira precisou se mobilizar para combater a epidemia: autoridades públicas, membros da sociedade civil, empresas privadas, entre outros, e, como em qualquer guerra, existiram atitudes mesquinhas e generosas, gente que se aproveitou da situação para o bem próprio e gente que resolveu cuidar melhor do próximo. A gripe espanhola transformou São Paulo.

 

Frente do hospital da Hospedaria de Imigrantes do Brás depois de reformado. Foto: Acervo Museu da Imigração/APESP

 

“Conselhos ao povo:

Evitar aglomerações, principalmente à noite.

Não fazer visitas.

Tomar cuidados higyenicos com o nariz e a garganta: inalações de vaselina mentholada, gargarejos com água e sal, com água iodada, com ácido cítrico, tannino e infusões contendo tannino, como folhas de goiabeira e outras (...).

Evitar toda fadiga ou excesso physico.

O doente, aos primeiros symptomas, deve ir para a cama, pois o repouso auxilia a cura e afasta as complicações e contágio. Não deve receber, absolutamente, nenhuma visita.

Evitar as causas de resfriamento, é de necessidade tanto para os são, como para os doentes e os convalescentes.

As pessoas idosas devem applicar-se com mais rigor ainda todos esses cuidados”.[4]

Assim sugeriam os jornais paulistas no início da epidemia. Tais avisos deram resultado. A Gazeta de 23 de outubro de 1918 informava o seguinte cenário da capital:

“(...). O movimento nas ruas é que diminui sensivelmente. O elemento feminino desapareceu quase por completo. No Triângulo[5] só se têm visto aquelas que precisam ganhar o pão de cada dia nas fábricas, ateliês de modas e estabelecimentos comerciais. Não existe há vários dias o ‘footing’ (...).[6]

Paulo Duarte em “Os Mortos de Seabrook” também descreve alguns aspectos da cidade durante a crise:

“A Avenida Paulista, onde fui tomar o bonde, quase deserta (...). Em toda a Rua da Consolação, e isso era geral em toda a cidade, muita pouca gente a pé, alguns automóveis, principalmente de médicos e os caminhões carregando cadáveres para os cemitérios. Esta paisagem tornou-se rotina (...). ” [7]

E continua:

“(...). Deixei o meu isolamento e tomei o bonde, já noite, rumo ao Largo do Paissandu. (...) A mudança da cidade era enorme. Deserta, e gente que corria, aqui e ali. O Cemitério da Consolação iluminado, enterramentos que se faziam até durante a noite (...)”.[8]

 

Enfermaria dos homens na Hospedaria de Imigrantes do Brás. Foto: Acervo Museu da Imigração/APESP

 

São Paulo mudou. Os parques da Aclimação e o Parque Antártica fecharam, do mesmo modo o Museu do Ipiranga, o Teatro Municipal e as casas noturnas da cidade. Clubes esportivos cederam suas instalações para tornarem-se hospitais de campanha, casos do Palestra Itália e do Paulistano ou realizaram campanhas para arrecadação de fundos à Cruz Vermelha (entidade muito atuante durante a epidemia), caso do Corinthians. Dois dias depois do anúncio do estado epidêmico na cidade, 16 de outubro, eram notificados 29 casos; dia 17, 99 casos; dia 18, 179 casos; dia 22, 982 casos, e no dia 23, já eram 1144 casos. No início de novembro, a média diária de casos novos era de sete mil: um número assustador para o tamanho de São Paulo na época. Evidentemente, os hospitais que existiam não davam conta de atender os números de doentes e, por esse motivo, foi necessária a criação de hospitais e postos de socorro improvisados. No mês de novembro já eram 73 espalhados pela capital paulista, como os colégios Sion, São Luís, Mackenzie e Des Oiseaux.

Como mencionado no início do texto, o maior dos hospitais improvisados funcionou na Hospedaria de Imigrante do Brás. O edifício já possuía uma estrutura médico-hospitalar razoável, tinha uma capacidade grande para leitos e se localizava entre os bairros que, além de mais populosos da cidade, eram os mais afetados pela doença. O proletariado foi muito mais castigado pela gripe espanhola e os cortiços “passaram a ser identificados como os elementos explicadores da permanência e da tragicidade com que a crise sanitária abatia-se sobre o município (...). O cortiço e seus moradores foram então reconhecidos como os agentes da influenza”.[9] Os bairros mais pobres enterraram a maioria dos mortos na cidade, como a Mooca, Belenzinho, Penha, Brás e Bom Retiro. O hospital da Hospedaria foi, certamente, o refúgio de grande parte dos doentes dessas localidades.

Numa epidemia desse porte, inédita na cidade e que atormentou toda a sociedade, era natural o surgimento de boatos. Um deles, que podemos perceber na fala da personagem de Monteiro Lobato, se relacionava ao tratamento dispensado à população doente no hospital da Hospedaria. Se espalhou a notícia de que ali (e em alguns outros postos de socorro) era distribuído o “chá da meia-noite” (bebida mortífera distribuída aos pacientes considerados incuráveis). Verdade ou não, o fato é que as pessoas tinham medo de ir para alguns hospitais. Esse medo era alimentado pelas cenas dos bondes de Light repletos de caixões, teatros que se converteram em necrotérios, notícias de cadáveres nas ruas e até de “mortos-vivos”.

O que se sabe, em razão da Hospedaria ser um dos maiores hospitais e estar no epicentro da epidemia, é que lá ocorreram diversos óbitos. Livros de registro de cemitérios informam que foram abertas valas comuns no cemitério do Brás e, em uma delas, no período de dois dias, foram depositados 91 corpos provenientes da Hospedaria de Imigrantes[10]. Em um artigo do dia 2 de dezembro, sobre a notificação dos óbitos, o Diário Popular informa:

“Sabemos, por exemplo, que de 5 a 21 do corrente (novembro) não foi anotado, no respectivo cartório, um único óbito de gripado ocorrido no Hospital da Imigração. Lemos, nesse sentido, uma informação oficial, levada ao conhecimento da justiça orfanológica, sendo certo, entretanto, que não podia ter deixado de verificar-se, naquele período e naquela enfermaria, pelo menos uma dúzia de falecimentos...”[11]

A gripe espanhola grassou em São Paulo por aproximadamente 66 dias. Apesar das dificuldades em obter estatísticas precisas, estima-se que ela fez mais de 12 mil vítimas no estado paulista, mais de 5 mil na capital. Alguns estudiosos sugerem que ela infectou cerca de 350 mil pessoas na cidade de São Paulo (o que significaria dois terços da população).

O hospital da Hospedaria de Imigrantes do Brás, segundo Relatório da Secretaria da Agricultura, tratou de 1508 enfermos (entre 18 de outubro e 30 de novembro de 1918) e preparou 14.215 receitas médicas. Os responsáveis por coordenar os atendimentos foram o médico Dr. Mario Graccho e o farmacêutico Augusto Seixas, mas muitas outras pessoas se envolveram diretamente no cuidado com os doentes. Cozinheiros e auxiliares de cozinha prepararam 8.797 litros de leite, 13.123 caldos de galinha e 4.125 canjas de galinha; um grupo de mulheres dirigidas pela superiora do Pensionato das Irmãs da Esperança, confeccionou para o hospital 909 lençóis, 40 fronhas, 812 camisolas e 150 peças de vestuário para crianças; os padres Missionários do Coração de Maria e as freiras Irmãs da Esperança ofereceram assistência religiosa aos doentes, e essas últimas também atuaram como enfermeiras[12].

As semelhanças dessa história com a epidemia do Coronavírus em 2020 são muito perceptíveis. A São Paulo pós 1918 tentou esquecer a gripe espanhola da memória oficial[13], apesar de ela ter deixado marcas indeléveis na cidade e diversos aprendizados. O que será da cidade de São Paulo após o COVID-19?

 

Referências bibliográficas
[1] Lobato, Monteiro. “Fatia de vida”. In: Negrinha, Citação publicada no livro “A gripe espanhola em São Paulo, 1918: epidemia e sociedade”, de Cláudio Bertolli Filho.
[2] FILHO, Claudio Bertolli. A gripe espanhola em São Paulo, 1918: epidemia e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 74.
[3] FILHO, Claudio Bertolli. A gripe espanhola em São Paulo, 1918: epidemia e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 153.
[4] Jornal o Correio Paulistano, 23/10/1918. Disponível em:
http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=090972_06&PagFis=44668
[5] Região considerada como núcleo do centro velho de São Paulo formada pelas ruas Direita, XV de Novembro e São Bento, tocando a Igreja de São Francisco, Mosteiro de São Bento e o Pátio do Colégio.
[6] Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=103730_04&pesq=1918
[7] FILHO, Claudio Bertolli. A gripe espanhola em São Paulo, 1918: epidemia e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 216.
[8] FILHO, Claudio Bertolli. A gripe espanhola em São Paulo, 1918: epidemia e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 217.
[9] FILHO, Claudio Bertolli. A gripe espanhola em São Paulo, 1918: epidemia e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 268.
[10] FILHO, Claudio Bertolli. A gripe espanhola em São Paulo, 1918: epidemia e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 249.
[11] FILHO, Claudio Bertolli. A gripe espanhola em São Paulo, 1918: epidemia e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 81.
[12] Relatório da Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas, 1918. Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP).
[13] FILHO, Claudio Bertolli. A gripe espanhola em São Paulo, 1918: epidemia e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 360.

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